Ratos e Reiki

Você talvez já tenha visto, em alguma rede social, um texto proclamando que um estudo brasileiro envolvendo camundongos "provou" a validade do uso da imposição das mãos, ou do reiki, ou do toque terapêutico -- todas modalidades em que o praticante gesticula sobre o corpo do paciente, sem tocá-lo, na tentativa de diagnosticar ou curar doenças, supostamente por meio de algum tipo de transferência de energia.

O estudo citado é uma dissertação de mestrado realizada na USP, em 2003, e que foi tema de uma matéria da Revista Galileu. O trabalho chegou a ser discutido na seção de comentários deste blog, no ano passado, mas eu nunca havia escrito nada a respeito, confesso, por profunda preguiça. Mas, vendo o assunto voltar à baila, senti que era hora de tratar dele para, como dizia Arthur Conan Doyle, não deixar a coisa passar como verdade apenas "por default".

Reproduzo, abaixo, o resumo do estudo apresentado pela Galileu:

No experimento, a equipe de pesquisadores dividiu 60 camundongos com tumores em três grupos. O grupo controle não recebeu nenhum tipo de tratamento; o grupo “controle-luva” recebeu imposição com um par de luvas preso a cabos de madeira; e o grupo “impostação” teve o tratamento tradicional sempre pelas mãos da mesma pessoa.

Depois de sacrificados, os animais foram avaliados quanto a sua resposta imunológica, ou seja, a capacidade do organismo de destruir tumores. Os resultados mostraram que, nos animais do grupo “impostação”, os glóbulos brancos e células imunológicas tinham dobrado sua capacidade de reconhecer e destruir as células cancerígenas.

É um bom resumo. Cabe apenas acrescentar que as luvas, cheias de algodão, tinham o papel de simular uma condição-placebo -- isto é, produzir nos camundongos um efeito psicológico e emocional igual, ou ao menos bem semelhante, ao da presença de um par de mãos humanas, numa tentativa de isolar os efeitos desses fatores, digamos, "naturais", do poder das "energias sutis" a que o autor do trabalho gostaria de atribuir os resultados obtidos. Esses resultados imunológicos positivos saíram de quatro de seis testes estatísticos realizados (dois deles não produziram resultados significativos). Citando a dissertação, constatou-se que:

Elevação na contagem do número de monócitos (p<0,05);
Diminuição na contagem do número de plaquetas (p<0,05);
Elevação da citotoxicidade de células não-aderentes com atividade NK e LAK (p<0,005).

Neste ponto, parecem ficar claros alguns problemas metodológicos, que enumero a seguir:

1. Quem disse que luvas cheias de algodão são um bom placebo para imposição das mãos?

A questão de qual o placebo adequado para testes de reiki é discutida na literatura científica internacional, e luvas não parecem a melhor solução. Luvas, afinal, não têm o cheiro das mãos, não suam como as mãos, não têm a temperatura das mãos. Aliás, as luvas usadas, neste experimento específico, sequer se parecem com mãos! (A imagem abaixo foi copiada do corpo da dissertação).


2. A análise das amostras foi feita de modo cego?

A matéria da Galileu não diz, e a dissertação, também não. Num teste cego, a análise das amostras dos camundongos "tratados" e dos animais dos dois grupos de controle (com ou sem placebo) seria feita por profissionais ignorantes quanto à origem do material. A longa experiência humana em estudos de tratamentos médicos e, também, de fenômenos paranormais mostra que "cegar" o estudo é a única forma de garantir que os preconceitos, crenças, desejos e expectativas dos experimentadores não contaminem o resultado. 

3. Os níveis de significância estatística são adequados?

Quando se diz que o resultado de um teste estatístico é significativo com "p<0.05", isso quer dizer que a chance de o resultado obtido ser fruto de mero acaso -- e não do fenômeno que você está investigando -- é menor que 5%. Esse número mágico, 5%, é usado por questões de conveniência e tradição histórica, embora algumas ciências, como a física de partículas, já tenham assumido que valores de "p" muito menores que 0,05 são necessários para comprovar determinados fenômenos. Um problema comumente ignorado é o de que, quantos mais testes se realizam numa amostra, menor deve ser o valor de "p" considerado significativo.

O motivo é fácil de entender: imagine que cada teste realizado na base de dados corresponda a um sorteio. A diferença, aqui, é que ser "sorteado", no caso, é sinal de azar: você está obtendo um resultado que parece confirmar sua hipótese, mas que na verdade não passa de ruído. Bem, cada novo teste representa um novo sorteio. Isto é, uma nova oportunidade de ser enganado pelo acaso. Ao realizar seis testes com "p" de 0,05, a chance de se obter pelo menos um resultado falso positivo sobe de 0,05 para 0,26. Passa de 5% para 26%. Em outras palavras, sua chance de estar certo ao afirmar que evento é real cai de 95% para 74%.

A dissertação não informa se alguma correção foi aplicada para dar conta dessa possibilidade.

Suponhamos, porém, que a alteração fisiológica nos camundongos tratados seja real, estatisticamente significativa e não tenha sido causada pelo cheiro do sabonete com que o aplicador de reiki lavou as mãos: resumindo, que nenhuma das armadilhas metodológicas tenha afetado o resultado final. Ainda assim, há problemas conceituais que permeiam todo o trabalho, e que surgem, de modo mais grave, na reportagem da Galileu

O trabalho acadêmico ainda menciona algumas possíveis causas alternativas -- para além da interação de um suposto "campo de energia" do corpo humano com o organismo dos roedores -- para o resultado, como estresse ou variações hormonais. A investigação da questão hormonal, no entanto, é postergada (o texto diz que amostras foram preservadas para análise posterior) e o estresse é posto de lado por não terem sido encontrados outros marcadores desse tipo de condição. 

O que nos traz a uma questão curiosa: o que é mais provável -- que animais estressados não apresentem todos os marcadores bioquímicos da condição, mas apenas alguns, ou que os marcadores tenham surgido por influência de um campo energético misterioso, desconhecido pela ciência?

A dissertação não responde diretamente à pergunta, mas a opção do autor é clara. O texto fala, de passagem, em Einstein e mecânica quântica, mas a referência dada é um livro popular de divulgação científica (O Universo Elegante, de Brian Greene), cujo autor provavelmente ficaria roxo de vergonha -- ou raiva -- ao ver seu trabalho invocado dessa forma. 

Menciona ainda "energias sutis, que seriam um conjunto de energias que ainda não foram exatamente esclarecidas pela ciência", como se fosse uma categoria científica estabelecida, e não um conceito altamente polêmico, quando não francamente marginal e associado a charlatanismos de todo tipo. Também insiste em tratar o eletromagnetismo -- talvez a força mais longamente conhecida a estudada pelos físicos -- como se fosse algo misterioso e vagamente místico, numa espécie de regressão atávica aos tempos de Mesmer

É sintomático que o livro citado como referência para escorar essa associação entre eletromagnetismo e "energias sutis", Energy Medicine: The Scientific Basis, tenha sido impiedosamente demolido numa crítica publicada na revista Skeptic, assinada pela médica Harriet Hall. E, ao mesmo tempo em que cita Energy Medicine, a dissertação se esquiva de mencionar o artigo de Emily Rosa, publicado no periódico com revisão pelos pares JAMA, em 1998, demonstrando que praticantes de "toque terapêutico" são incapazes de detectar o suposto "campo de energia" do corpo humano.

Mas eu ia dizendo que a dissertação é menos problemática que a reportagem. Isso porque a peça acadêmica, em suas conclusões, é de um tímido conservadorismo: 

"A diferença dos resultados obtidos entre os grupos Controles e o grupo Impostação não sugerem que as alterações fisiológicas encontradas sejam decorrentes de condicionamento dos animais ou efeito placebo. Novos estudos experimentais devem ser realizados para melhor avaliar os efeitos dessa prática, investigando a função plaquetária e os diversos fatores que podem estar envolvidos nessa resposta e na regulação das respostas imunológicas e endócrinas."

Nada de campos eletromagnéticos biológicos ou energias sutis, veja só. Nenhuma palavra, nas conclusões, dando a entender que o reiki ou o toque terapêutico foram "provados cientificamente" (lembre-se disso da próxima vez que encontrar essa alegação no Facebook). 

Já na revista, livre das amarras da prudência acadêmica, o pesquisador é mais explícito: “Não sabemos ainda distinguir se a energia que o reiki trabalha é magnética, elétrica ou eletromagnética. Os artigos descrevem- na como ‘energia sutil’, de natureza não esclarecida pela física atual”.

"Energia (...) de natureza não esclarecida pela física atual", até onde eu sabia, era a energia escura que está afastando as galáxias. Será a mesma coisa?  

Comentários

  1. Excelente análise que, infelizmente como sempre, será ignorada pelos que querem acreditar, e os que já acreditam.

    O viés pessoal, o desejo de crer, será sempre mais forte que uma análise fria e racional, e a dificuldade de compreender que o objetivo do ceticismo é garantir a confiabilidade de uma conclusão impedem que os que já creem entendam esse tipo de visão.

    Mas está um ótimo texto, como sempre.:- )

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    1. Obrigado, Homero! Mas o objetivo é mais mesmo esclarecer os confusos do que converter os convictos. Sempre fico meio assombrado quando dou um google em um tema assim e vejo que quase não aparecem visões céticas...

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  2. Taí um assunto que eu não tenho muita coisa a dizer.

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  3. Excelente Carlos. Isso é ciência em andamento! Alguém dá um tropeço e logo outro alguém corrige o rumo. Cabe à nós, que tivemos acesso ao texto repassá-lo sempre que o boato dos "ratos e o reiki" nos assombrarem.

    Algo que realmente me preocupa é o fato do orientador ter deixado passar todos esses erros que são bastante evidentes. Dada a polêmica do assunto e os resultados obtidos a metodologia deveria ter sido revisada com ainda mais cautela.

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    1. Na verdade o orientador parece ser tão maluco quanto o mestrando, reproduzo abaixo meu comentário ao post do Carlos no ano passado no qual essa dissertação foi mencionada:

      "O pior é que quanto mais leio sobre esse caso, mais ele cheira mal: o currículo Lattes da orientadora daquela dissertação é fantástico, inclui até um postdoc por Cornell (Sagan e Feynman devem estar se contorcendo no túmulo).

      No entanto, um dos artigos estrelados (isto é, considerados pelo próprio autor como um dos mais significativos da sua carreira) é intitulado "Ação da água energizada com toque terapêutico na cicatrização de lesões na pele de camundongos". Não encontrei o texto completo, mas a julgar pelo trabalho do orientando dela, não é difícil imaginar a conclusão desse artigo.

      Outro fato curioso é que a orientadora parece ser bem ativa na área de pesquisas sobre o efeito da radiação eletromagnética de telefones celulares sobre a saúde:

      - POZZI, D. H. B. . Averiguação de instalação de antena de telefonia celular em área residencial, com potencialidade de risco à saúde pública em decorrência da exposição às radiações daquela. 2002.

      - POZZI, D. H. B. . Radiação por ondas de telefonia celular e males para a saúde (IC16/04). 2004.

      - POZZI, D. H. B. . Risco a exposição eletro magnética. 2005.

      - POZZI, D. H. B. . Estações radio-base. 2005.

      - POZZI, D. H. B. . Dano causado pela radiação de antenas de telefonia. 2005.

      - POZZI, D. H. B. . Impacto das torres de telefonia móvel na Saúde. 2006.

      - POZZI, D. H. B. . Antenas de telefonia celular em área residencial com potencialidade de risco à saúde pública. 2008.

      - POZZI, D. H. B. . Inquérito civil nº198/08 Empresa Oi de telefonia celular. 2008.

      Acho que temos um padrão aqui... Água energizada, imposição de mãos, efeitos nocivos de torres de celular... :-)"

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  4. Ah, quando digo não ter muita coisa a dizer, refiro-me aos métodos de investigação cientifica. Ainda não sei muito sobre esse sistema.

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  5. mal comparando, a recente e badalada descoberta de uma relação mental à distancia entre ratos, não seria a já conhecida e muitas vezes testada Telepatia

    http://ponto.outraspalavras.net/2013/03/01/o-experimento-revolucionario-de-miguel-nicolelis/

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  6. Publicado, Marco. É sempre bom ter acesso a novas referências. Obrigado.

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  7. Ao estudar a eficácia de um tratamento, quem precisa de vários estudos bem projetados e executados seguidos de metaestudos, quando existem testemunhos? Está claro que no primeiro vídeo a paciente é monitorada por um computador, então é científico - tem até um cientista envolvido! Além disso, a homeopatia e a acupuntura ("para mim funciona") também estão no mundo todo! Estariam todos sendo enganados também? Claro que não, pois sabemos que a realidade se decide por opinião - e depois de decidida, basta promover os que falam a favor (os neutros) e ignorar os que falam contra.

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  8. Sou reikiana e acredito que a prática do reiki atende aos anseios de uma atuação holística, baseada na visão integral do ser humano, comumente relatada na literatura. Na minha experiência, o Reiki fornece ao indivíduo uma quantidade adequada de energia necessária para o equilíbrio da mente, do corpo e das emoções, o que corrobora com muitos estudos citados mundialmente.

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  9. Ola Carlos, analisei aqui sua publicação e acabei adentrando no link da NBCI, da qual trata de um estudo sobre o placebo e o Reiki. Vi que é uma instuição séria e que possui outras comprovações cientificas com o Reiki.

    Será que não é valido levar em consideração também o resultado destes estudos da instituição?

    Segue dois links com resultados positivos:
    - http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17109583
    - http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23221065

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    1. Oi, Gleison! Dos dois estudos que você cita, um é definido como "quase experimental" com uma amostra mito pequena (24 pessoas) e o outro, na opinião subjetiva dos pacientes, e não em avaliações clínicas. É claro que todos os estudos merecem ser levados em consideração, mas a qualidade deles também precisa ser fatorada. Por exemplo, uma revisão feita pela Colaboração Cochrane sobre estudos tratando de terapias de toque (http://summaries.cochrane.org/CD006535/touch-therapies-healing-touch-therapeutic-touch-and-reiki-for-the-treatment-of-pain-relief-for-adults) revela um grande número de resultados positivos, mas faz a seguinte ressalva: "As a results of inadequate data, the effects of touch therapies cannot be clearly declared." Ou seja, os estudos dão bons resultados mas, no geral, são estudos de pouca validade.

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  10. Júlia,

    O pior é ler sobre essas coisas e ver uma forte associação moral-religiosa com essas coisas, coisa do tipo:

    Que essas "energias sutis" só podem ser manipuladas por pessoas treinadas e etc, ai quando vc vai ler sobre esses treinos, vc começa a ler um discurso moral maçante (eu não tenho paciência pra resumir isso porque é chato mas se vc um dia tiver saco pra ler vai entender o que digo).

    em resumo dar a entender que só é possível e funciona com pessoas "elevadas espiritualmente" no final das contas, e essa elevação é definida com princípios muito semelhantes a qualquer outro de fundo religioso.

    pra mim não passa de um modo de alguém tentar se sentir superior e mais nada.

    Se tivesse efeitos tão potentes sobre o orgânismo como falam, eu devia ser capaz de ficar com meus seios maiores com isso ou ter olhos azuis hehe, clinicas estéticas nunca teriam surgido rsrs

    mas como vc vai ler incessantemente o "o propósito dessas coisas é divino e não foi feito pra coisas superficiais, fúteis ou egoístas" em resumo

    e o pior é que eles tentam interpretar a ciência como algo superficial, fútil e sem propósito.

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