Cuba cura câncer?



O pior tipo de fake news não é a que mente de modo descarado, mas a que usa um base verdadeira como pedra angular para um castelo de falsidades. A mentira pura e simples pode ser pura e simplesmente negada; o edifício fajuto erguido sobre a base verdadeira requer cuidado especial, já que qualquer tentativa de demoli-lo às pressas torna a pessoa que tenta produzir o esclarecimento vulnerável à acusação de estar negando uma verdade -- aquela, pequenininha, ali no alicerce.

Caso em tela: um amigo me envia, pelo Facebook, link para um texto online que afirma que Cuba tem uma vacina milagrosa que cura câncer de pulmão, que já beneficiou milhares de pessoas, mas que a maligna indústria farmacêutica capitalista não quer que você saiba disso. É o típico caso de alegação que aperta todos os botões emocionais certos: para o ideólogo de direita é, obviamente, uma mentira comunista; para o de esquerda, é, obviamente, uma prova da cupidez capitalista, da ineficiência do mercado, um claro triunfo de la revolución.

Em meio à festa ideológica, a verdade, claro, é só um detalhe. Mas enfim: qual a verdade?

A verdade é que o Centro de Imunologia Molecular (CIM) de Havana, Cuba, realmente desenvolveu uma forma de imunoterapia -- uma terapia que funciona recrutando o sistema imunológico: daí o nome "vacina", porque é assim que as vacinas comuns funcionam -- e que parece ser útil para o tratamento de um tipo específico de câncer de pulmão. Ênfase no parece. Não é verdade que "milhares de pessoas" já foram curadas pelo tratamento. Milhares de pessoas -- de quatro a cinco mil -- foram submetidas a ele, o que é uma grande diferença.

Uma das coisas mais difíceis do mundo é determinar se algo faz bem ou mal para a saúde humana. A gente muitas vezes não nota essa dificuldade, porque estamos acostumados a pensar em casos extremos, onde o efeito é grande, óbvio e imediato, como ser atropelado ou tomar uma garrafa de veneno (faz mal) ou dar vitamina C pra alguém com escorbuto (faz bem).

O problema é que a maioria  dos produtos, substâncias, procedimentos, etc., tem efeitos muito menores, que se confundem facilmente com o "ruído de fundo": estou me sentindo mais bem disposto hoje porque tomei um multivitamínico, ou porque está um dia lindo e fui pedalando para o trabalho? Ou só porque está um dia lindo? Ou porque o multivitamínico me trouxe conforto emocional (e portanto qualquer outra pílula colorida teria tido o mesmo efeito)? As endorfinas do exercício proporcionado pela bicicleta têm algo a ver com isso?

Enfim. Para separar o efeito específico do ruído de fundo (e, até mesmo, determinar se existe mesmo algum efeito específico) a humanidade criou o triunfo lógico-empírico-filosófico conhecido como teste clínico. E a vacina do CIM está agora começando a passar por esses testes, nos Estados Unidos, em parceria com uma empresa americana. Pois é, os capitalistas escrotos malditos que querem ficar ricos às custas da dor e do sofrimento da humanidade estão colaborando com os comunistas cubanos escrotos que querem escravizar o mundo livre, e juntos vêm fazendo estudos científicos para ver se a vacina é boa mesmo.

Testes prévios já foram realizados em Cuba, mas os resultados, embora interessantes, não indicam a descoberta de uma cura mágica: há informação de que o ganho em termos de tempo de vida é pequeno -- meses -- e de que 20% dos pacientes vacinados não viveram mais do que os dos grupos de controle. Também há a possibilidade de que o câncer acabe se adaptando à vacina, o que a tornaria inútil no longo prazo.

Mas todas essas são questões que precisam ser respondidas com ciência, não ideologia -- e muito menos com alarmismo paranoico ou promessas milagrosas.

Comentários

  1. Eu nunca entendi este papo de que “a industria farmacêutica lucra com o tratamento prolongado”. Ela pode muito bem lucrar com a vacina e/ou tratamento eficaz e definitivo, se eles existirem.

    O que será que dá mais lucro? Uma vacina baratinha que pode ser dada para centenas de milhões de pacientes ou um tratamento caríssimo que apenas alguns poucos milhares podem bancar?

    E mesmo se a cura definitiva existir através de algum remédio mágico e secreto. Ele poderia ser vendido, certamente com muito mais lucro, pelo mesmo preço de todo o longo tratamento atual. Por ser eficaz, a demanda certamente cresceria já que as famílias dos doentes estariam dispostas a um maior sacrifício financeiro caso houvesse certeza de cura.

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