Egito, Estado, religião e os presunçosos
Existe uma palavra da língua inglesa, "smug", que define o sujeito que fica de lado, com um sorrisinho de superioridade, enquanto os outros ao redor fazem bobagem. Em português, os equivalentes mais próximos seriam "cheio de si", "presunçoso" ou "complacente".
"Smug" foi o termo que me veio à cabeça quando comecei a encontrar, pelas esquinas da web, textos de cristãos conservadores vangloriando-se da "tradição cristã de separação entre Estado e religião" que torna a democracia viável no Ocidente, em oposição ao que ocorre, por exemplo, no Egito.
De fato, a ideia de que o que entendemos como a moderna separação entre Estado e religião deriva de um "insight" genial de Jesus, que resultou na fala registrada no capítulo 12 de Marcos, 22 de Mateus e 20 de Lucas ("Dai a César e o que é de César e a Deus o que é de Deus") é tão prevalente quanto grosseiramente errada.
No contexto em que aparece nos Evangelhos sinópticos, a frase é mais uma evasão do que qualquer outra coisa. Fariseus estavam tentando apanhar Jesus numa pegadinha, forçando-o a comprometer-se com uma posição impopular (sancionar o pagamento de impostos a Roma) ou ilegal (defender a sonegação). Pego entre a cruz a e a caldeirinha, e ainda não totalmente preparado para a primeira, ele se saiu com a fórmula.
(Outra evasão famosa é a "Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra", no capítulo 8 de João).
Alguém poderia argumentar, no entanto, que mais importante do que a intenção original da frase é a forma como ela foi trabalhada pela tradição cristã, e que essa tradição é de separação entre Estado e religião... certo?
Não.
Desde os tempos do Império Romano o cristianismo nunca fez questão de se afastar do governo. Não constam da história os protestos cristãos em defesa da liberdade de consciência e da separação entre Estado e Igreja quando, por exemplo, o imperador Justiniano mandou fechar as escolas de filosofia de Atenas, para garantir que não houvesse alternativa intelectual à cosmovisão cristã. Ainda hoje, muitos países protestantes da Europa têm igrejas cristãs oficiais, sustentadas pelo Estado, onde padres e bispos são funcionários públicos.
Na tradição católica, o slogan sobre César e Deus comumente é visto não como uma ordem de separação, mas como uma divisão de trabalho: o povo é o rebanho, a Igreja é o pastor, o Estado são os cães pastores. O que deixa bem claro quem deve mandar em quem.
(Num exemplo de anos recentes, o bispo da cidade de Jundiaí exigiu -- e conseguiu -- que o então prefeito proibisse a distribuição de pílulas do dia seguinte na rede local de saúde pública.)
Para que você não tenha de confiar cegamente na minha palavra, indico-lhe o Syllabus de Pio IX. Emitido pelo papa em 1864, esse embaraçoso documento lista 80 afirmações ou proposições que, segundo Sua Santidade, são fundamentalmente erradas. Entre as ideias condenadas por Pio IX (beatificado em 2000), estão as de que:
55. A Igreja deva ser separada do Estado e o Estado, da Igreja;
(...)
77. No presente não é mais razoável que a religião Católica seja mantida como a única religião do Estado, com a exclusão de todas as demais formas de adoração.
Em resumo, assim como os habitantes do mundo muçulmano estão tendo de fazer hoje, os do mundo cristão tiveram de conquistar a duras penas -- muitas vezes, com sangue e pela força -- a independência do governo em relação à religião. É parte da retórica religiosa tentar reconstruir derrotas em vitórias, perdas em concessões, castigos em favores, mas não nos deixemos enganar. O preço da liberdade continua a ser a eterna vigilância.
(Ah, sim: a imagem acima é do beato Pio IX, nosso campeão da liberdade de religião.)
"Smug" foi o termo que me veio à cabeça quando comecei a encontrar, pelas esquinas da web, textos de cristãos conservadores vangloriando-se da "tradição cristã de separação entre Estado e religião" que torna a democracia viável no Ocidente, em oposição ao que ocorre, por exemplo, no Egito.
De fato, a ideia de que o que entendemos como a moderna separação entre Estado e religião deriva de um "insight" genial de Jesus, que resultou na fala registrada no capítulo 12 de Marcos, 22 de Mateus e 20 de Lucas ("Dai a César e o que é de César e a Deus o que é de Deus") é tão prevalente quanto grosseiramente errada.
No contexto em que aparece nos Evangelhos sinópticos, a frase é mais uma evasão do que qualquer outra coisa. Fariseus estavam tentando apanhar Jesus numa pegadinha, forçando-o a comprometer-se com uma posição impopular (sancionar o pagamento de impostos a Roma) ou ilegal (defender a sonegação). Pego entre a cruz a e a caldeirinha, e ainda não totalmente preparado para a primeira, ele se saiu com a fórmula.
(Outra evasão famosa é a "Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra", no capítulo 8 de João).
Alguém poderia argumentar, no entanto, que mais importante do que a intenção original da frase é a forma como ela foi trabalhada pela tradição cristã, e que essa tradição é de separação entre Estado e religião... certo?
Não.
Desde os tempos do Império Romano o cristianismo nunca fez questão de se afastar do governo. Não constam da história os protestos cristãos em defesa da liberdade de consciência e da separação entre Estado e Igreja quando, por exemplo, o imperador Justiniano mandou fechar as escolas de filosofia de Atenas, para garantir que não houvesse alternativa intelectual à cosmovisão cristã. Ainda hoje, muitos países protestantes da Europa têm igrejas cristãs oficiais, sustentadas pelo Estado, onde padres e bispos são funcionários públicos.
Na tradição católica, o slogan sobre César e Deus comumente é visto não como uma ordem de separação, mas como uma divisão de trabalho: o povo é o rebanho, a Igreja é o pastor, o Estado são os cães pastores. O que deixa bem claro quem deve mandar em quem.
(Num exemplo de anos recentes, o bispo da cidade de Jundiaí exigiu -- e conseguiu -- que o então prefeito proibisse a distribuição de pílulas do dia seguinte na rede local de saúde pública.)
Para que você não tenha de confiar cegamente na minha palavra, indico-lhe o Syllabus de Pio IX. Emitido pelo papa em 1864, esse embaraçoso documento lista 80 afirmações ou proposições que, segundo Sua Santidade, são fundamentalmente erradas. Entre as ideias condenadas por Pio IX (beatificado em 2000), estão as de que:
55. A Igreja deva ser separada do Estado e o Estado, da Igreja;
(...)
77. No presente não é mais razoável que a religião Católica seja mantida como a única religião do Estado, com a exclusão de todas as demais formas de adoração.
Em resumo, assim como os habitantes do mundo muçulmano estão tendo de fazer hoje, os do mundo cristão tiveram de conquistar a duras penas -- muitas vezes, com sangue e pela força -- a independência do governo em relação à religião. É parte da retórica religiosa tentar reconstruir derrotas em vitórias, perdas em concessões, castigos em favores, mas não nos deixemos enganar. O preço da liberdade continua a ser a eterna vigilância.
(Ah, sim: a imagem acima é do beato Pio IX, nosso campeão da liberdade de religião.)
Eles adoram tirar citações de contexto para vender gato por lebre, não? Escrevi um post no meu blog sobre isso esta semana, é sobre uma empresa cristã usando uma frase da bíblia para implicar que a granola deles é boa, quando na verdade a frase no contexto original indica algo totalmente diferente:
ResponderExcluirhttp://diario.liquidoxide.com/?p=2738
Isso é uma das coisas que adoro na Bíblia, tem versículo pra tudo. Dá pra tirar de lá frases a favor ou contra praticamente qualquer coisa.
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