De tragédias e de valores

Nos 14 anos em que trabalhei no Grupo Estado, muitas vezes me vi defendendo -- em mesas de bar, festas de família, e até na área de cafezinho da redação -- os editoriais do Estadão da acusação de que seriam ranhetões, "direitões", excessivamente conservadores.

Claro, sempre houve um prisma conservador filtrando as análises publicadas na vetusta página 3, mas eu insistia em apontar que, em muitos casos, a essência do que se dizia ali era, se não correta, ao menos apoiada numa argumentação firme o bastante para não poder ser desprezada com um dar de ombros ou o bom e velho "se o Estadão defende X, então X deve ser uma merda".

Mas eis que, neste sábado, eu abro o jornal e vejo um texto que reduz toda a minha linha argumentativa a pó de traque. Trata-se da análise feita pelo jornal da tragédia do Realengo. O editorial Que nos sirva de alerta não só se abstém de comentar o caráter de fanatismo religioso do crime -- mais sobre isso adiante -- como ainda joga com o clichê da "falência dos valores humanos em seu embate permenente com o pragmatismo da sociedade de consumo" e, mirabile dictu!, ainda encontra razões para atacar um criador de videogames dos Estados Unidos.

A hipótese de uma "falência dos valores humanos" diante do "pragmatismo" pressupõe uma época, em tempos idos, onde os valores humanos eram uma sólida corporação -- mas que, no tempo que separa essa época áurea do presente, foi sendo acossada pelas pressões do "pragmatismo da sociedade de consumo" contemporânea, entrou em concordata e agora caminha para a liquidação extrajudicial.

Fico imaginando, quando foi que os valores humanos se sobrepuseram ao pragmatismo? Em tempos homéricos, quando Agamenon sacrificou a própria filha para garantir o sucesso da guerra contra Troia? Em tempos bíblicos, quando Abraão não hesitou em prostituir a própria esposa para atrair a boa vontade do faraó do Egito? Talvez na Atenas dos filósofos, sustentada por trabalho escravo? Ou na Roma dos jogos de gladiadores?

Talvez o editorialista estivesse se referindo à Idade Média? As Cruzadas talvez tenham sido impulsionadas mais por valores do que por considerações pragmáticas (o que nos deveria fazer parar para pensar se ter "valores" é uma boa ideia, afinal). Mas então, o que dizer da Quarta Cruzada, que desistiu de atacar os muçulmanos e optou pelo pragmatíssimo saque de Constantinopla?



Parafraseando Bertrand Russell, o que a história ensina é que, no geral, o ser humano não age de acordo com seus valores; em vez disso, ele escolhe os valores que melhor justificam o que já estava com vontade de fazer. Esse pragmatismo, tão cínico quanto, muitas vezes, inconsciente, não foi inventado pela sociedade de consumo ou pela globalização. Está conosco desde que descemos das árvores.

O que me traz ao segundo ponto do editorial, a condenação do designer de videogames que criou um jogo sobre massacres escolares -- um jogo que o assassino de Realengo provavelmente nunca viu -- e a olímpica omissão da clara inspiração bíblica do crime.



Os "valores" que o assassino escolheu para justificar o que havia decidido fazer não são os de um adolescente tarado por first-person-shooters, mas os do Levítico, um dos livros mais psicopáticos da Bíblia, todo obcecado com questões de pureza e de sacrifícios de sangue. Por exemplo, compare este trecho do livro supostamente sagrado:


19 A mulher que tiver o corrimento menstrual ficará durante sete dias na impureza das regras. Quem a tocar ficará impuro até à tarde. 20 O lugar em que ela deitar ou sentar durante as regras ficará impuro. 21 Quem tocar o leito dela deverá lavar as vestes, tomar banho e ficará impuro até à tarde. 22 Quem tocar um móvel no qual ela esteve sentada deverá lavar as vestes, tomar banho e ficará impuro até à tarde. 23 Se o objeto tocado estiver sobre o leito ou sobre o assento em que esteve sentada, ficará impuro até à tarde. 24 Se um homem dormir com ela, ficará contaminado com a impureza e estará impuro durante sete dias, ficando impuro também o leito em que dormir.


Com este trecho da carta-testamento do assassino:

Primeiramente deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem usar luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter contato direto comigo, nem nada que seja impuro poderá tocar em meu sangue.

A biomédica e escritora Cristina Lasaitis sugere, em seu blog, que o assassino sofria de uma doença mental e que o discurso religioso foi apenas o modo que ele encontrou para dar forma e expressão a seus conflitos íntimos. 

Se tivesse outro tipo de formação e outras referências culturais, talvez o assassino escrevesse uma carta com alusões a O Senhor dos Anéis, Guerra nas Estrelas ou, sim, até a videogames (e fico imaginando a onda de caça às bruxas que a imprensa e as autoridades desencadeariam, fosse esse o caso: basta lembrar o circo armado há alguns anos contra os livros de RPG).

Mas como a vestimenta da motivação foi religiosa, o editorialista prefere passar a borracha e culpar a decadência do ocidente e um remoto criador de videogames.

Mas, sim, é bem provável que a religião não tenha tido nada a ver com o crime, da mesma forma que Tolkien, George Lucas -- e o game designer -- não teriam tido nada a ver, caso as referências da carta fossem outras. 

Para encerrar, porém, deixo aqui um fato que você provavelmente não verá mencionado em momento algum da cobertura da tragédia de Realengo: os dois maiores massacres de civis, fora de contexto militar, da história recente foram cometidos por motivação religiosa: o 11 de setembro e o suicídio coletivo de Jonestown. Tire disso a conclusão que quiser.


Comentários

  1. Estou farto de ouvir os políticos no twitter se referindo à "pseudo"-crenças e apelando pra falácia do Falso Escocês. Não que eu ache que a religião foi o fator determinante para o massacre. Na melhor das hipóteses foi a espoleta que disparou um distúrbio já latente.

    Só que é absolutamente irritante insitir que aquele homem não era um verdadeiro cristão, ou que não tinha deus no coração quando em situações análogas no passado (e hoje, pelo que se vê) dedos acusadores são apontados para videogames, internet etc. enquanto as Sagradas Escrituras continuam imaculadas.

    Como o sangue de Wellington, aliás.

    -Daniel Bezerra

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  2. Quando publicaram as primeiras notícias, diziam que "pra matar criança, com certeza é um ateu sem Deus no coração".

    Depois começou a correr fofoca de que ele tinha ligações com muçulmanos e falaram "tem que ser terrorista islâmico fundamentalista pra fazer uma crueldade dessas".

    Quando saiu a carta com menções a Deus, pureza, pecado, oração e Jesus Cristo, aí disseram que "religião não tem nada a ver com isso".

    Ah é, sim, conta outra.

    Pra não falar do fato de a maior parte dos mortos e feridos terem sido meninAs e a imprensa insistir em falar em crianças, todos cheios de dedos, sequer admitindo a possibilidade de ser crime de ódio.

    Ninguém quer tocar nesses assuntos. Isso dá um cansaço avassalador e vontade de desistir.

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  3. Obrigado mais uma vez por verbalizar corretíssimamente um monte de idéias que estavam desorganizadas na minha cabeça. Desde o dia desse tenebroso acontecimento venho pensando exatamente nas mesmas coisas. A religião (ou mais especificamente no Brasil, o Cristianismo), é uma coisa intocável, eternamente inocente de qualquer coisa que esteja envolvida, por mais criminosa que seja. Cheguei a receber um email de um amigo revoltado (com razão) com o episódio e com as mazelas da humanidade em geral, que no fim bradava que essas coisas aconteciam por culpa "de quem não acredita em deus".
    OK, deixa ver se eu entendi: um fanático religioso mata 12 crianças, cita deus sem parar em sua carta, é a culpa é minha, porque não acredito "Nele"?

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  4. A ideia de culpar videogames é ridícula. Tem coisa mais violenta na TV e ninguém diz anda. O Balanço Geral da Record, por exemplo, é capaz de deprimir qualquer santo e inspirar qualquer demônio. ;)

    A diferença entre relacionar massacres a videogames e ao fanatismo religioso é muito óbvia: videogames, filmes, etc. estão no campo da ficção, aceitos como tal pelo senso comum. A religião tem status de verdade ou aspira a tal, e assim é vista e aceita pelo senso comum. Portanto, se um indivíduo vai matar (e principalmente morrer) por algum motivo, não será pelo que ele compreende ser uma ficção, mas pelo que ele considera ser uma verdade última e absoluta, transcendental e eterna. Eis o perigo. Perceba a diferença entre dois personagens igualmente falsos - o herói (ou vilão) do videogame e o deus todo-poderoso: o primeiro é de mentirinha e até os loucos sabem disso, enquanto o segundo é de mentirinha, mas de analfabeto a catedrático, tem muita gente que acredita piamente nele. ;)

    Abração, Carlos. Parabéns pelo texto!

    Sergio Viula
    www.glsgls.blogspot.com

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  5. otimo texto, carlos
    eu tb me senti imbuido de publicar um texto em meu blog na sexta feira, puto com a distorcao acerca do religiosismo do caso.

    se quiser ler, aqui está:
    http://radiacaodefundo.haaan.com/2011/04/08/realengo-e-sobre-como-a-religiao-envenena-tudo/

    vou tb republicar este seu texto no bule voador.
    abraço

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  6. Eu abomino estas contabilidades de culpa:

    Um psicopata entra numa escola e mata 12 crianças. De quem é a culpa?

    Na minha modesta opinião, de ninguém. Nem mesmo dele, que pra fazer uma barbaridade dessas simplesmente não está provido de razão.

    É uma fatalidade, que não se origina das religiões ou da falta delas, dos videogames, do desarmamento e o escambau.

    Morre muito mais gente em acidentes de trânsito provocado por embriaguês. Ninguém comenta porque somos todos hipócritas que achamos que estamos aptos a dirigir depois de umas biritas...

    Pois então, quem provoca um acidente de trânsito com vítimas fatais por embriaguês deveria ser enterrado na mesma vala insana dos puros irresponsáveis que o Wellington.

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  7. Alonso, boa colocação. Gostaria, porém, de aprofundar este raciocínio.

    Ninguém mais duvida que o alcoolismo seja uma doença. Todavia, só é possível que se manifeste por meio da interação com a bebida. Logo, a partir do momento em que o poder público aceita a livre comercialização e consumo de bebidas alcoólicas, ele deve assumir sua cota de responsabilidade pelo alcoolismo e suas consequências.

    Um grau abaixo, devemos refletir, também, sobre a influência do consumo excessivo de álcool nos casos de homicídio, violência doméstica e acidentes de trânsito.

    Não me parece que a proibição da comercialização e consumo seja a solução do caso. Haveria, sempre, a sombra do tráfico, as destilarias clandestinas, etc. O remédio custaria mais do que a doença.

    Resta ao poder público advertir sobre os males causados pelo excesso, punir infratores, amparar os adictos, enfim, adotar políticas públicas voltadas ao tema. Cria-se, com isto, uma rede de proteção social que busca gerenciar o caos, o elemento imprevisível dentro de uma relação de coisas que se quer determinística: álcool propicia lazer, bem-estar, relaxamento.

    Da mesma forma, a Religião deve saber lidar com este elemento fugidio, refletir sobre sua própria teoria do caos. Deve reconhecer e fazer a sociedade conhecer que o fanatismo religioso é uma doença multifacetada que, todavia, em algum momento irá se servir do discurso religioso para atualizar-se. Neste sentido, deveria voltar-se ao exame diagnóstico de psicopatias em potencial e amparar aqueles que mantém atitudes religiosas para além do limite razoável.

    Mas estaria ela disposta a isto? Acredito que não. Enquanto a religião se fartar nas emoções, na valorização do fervor e da entrega da razão, jamais será capaz de distinguir entre um seguidor fervoroso e um fanático perigoso.

    Cabe, então, ao poder público estabelecer os limites necessários. E são destes momentos de ruptura, nos quais o tecido social é rasgado com violência, que a discussão deve brotar: qual o papel da religião, dos religiosos, do Estado e da sociedade leiga e laica na contenção dos excessos que se alimentam do discurso religioso? Quais as políticas públicas necessárias para combater o papel relativo da religião nos casos extremos de loucura, fanatismo e terrorismo? No interesse de todos, não deve existir falso pudor quanto a esta abordagem.

    E talvez, quem sabe, um dia as Bíblias sejam vendidas com a advertência: Religião, aprecie com moderação.

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