Pondo cada coisa em seu devido lugar: o papel da intuição

Passe tanto tempo quanto eu batendo na tecla de que os métodos da ciência são a única rota razoavelmente segura para a verdade e o conhecimento ou, pior ainda, defendendo o Princípio de Clifford (proposto pelo matemático britânico William Clifford, no século XIX), segundo o qual aceitar uma alegação como verdadeira sem prova suficiente é perigoso e imoral, e você encontrará não uma, mas diversas vezes, variações da objeção do Asno de Buridan.

Para quem não conhece, esse é um asno fictício que teria morrido de fome porque era incapaz de decidir entre dois montes de feno (ou moitas na beira da estrada) igualmente apetitosos. A ideia é a de que esperar por prova suficiente, ainda mais por prova científica, antes de formular um juízo ou tomar uma decisão raramente é prático. As pessoas precisam contar com a intuição, o feeling, o palpite, senão ninguém sairia da cama nas manhãs de inverno. O Princípio de Clifford seria um ideal ético tão impraticável quanto o mandamento de vender tudo o que se tem e dar o dinheiro aos pobres.

(Que, por sua vez, deixariam de ser pobres e teriam de vender tudo o que têm e devolver o dinheiro para os ricos então empobrecidos... mas, divago.)

Essa objeção, no entanto, embute um pressuposto psicológico -- o de que seres humanos precisam de uma ilusão de certeza para poder funcionar no mundo. Se eu decido, digamos, atravessar a rua quando o sinal para pedestres abre, é porque me sinto certo de que os carros vão parar, mesmo sem ter prova científica -- digamos, um estudo estatístico indicando que 99,99% dos automóveis realmente param no sinal vermelho --para sustentar essa certeza.

Esse pressuposto, no entanto, é falso. Todos temos a consciência de que, algumas vezes, agimos com base em conjecturas, palpites, intuições. Tomamos decisões e formamos juízos com base na melhor informação disponível, que muitas vezes pode estar anos-luz aquém do padrão de aceitabilidade científica -- mas, se é a melhor informação disponível, WTF?

O que os maníacos cientificistas cliffordianos como eu bradamos -- no deserto, muitas vezes -- é que, se o conhecimento científico é provisório, palpites, intuições e conjecturas são mais provisórios ainda. Portanto, devem ser tratados com extremo cuidado; portanto, edifícios construídos sobre eles devem ter saídas de emergência em profusão, desobstruídas e muito bem sinalizadas. Ao fim e ao cabo, as pessoas deveriam, sempre que possível, evitar basear suas vidas ou tomar decisões realmente cruciais nesse tipo de coisa.

O mundo é um lugar cheio de incertezas e, sim, a evolução da espécie e a experiência pessoal de cada um conspiram para produzir uma série de atalhos intuitivos que, geralmente, se mostram bons o suficiente para nos permitir navegar o dia-a-dia. Mas, como muitos atalhos, esses envolvem desvios por becos escuros em vizinhanças inóspitas. Convém não esquecer isso.

(A imagem que ilustra esta postagem é um retrato de Clifford, e uma prova de com a intuição pode errar: ele realmente achava que essa barba era bonita!)

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