O eclipse e a forma da Terra

Hoje ao entardecer tem eclipse da Lua: a sombra da Terra vai passar pela face de nosso satélite natural, obscurecendo-a (mas não apagando-a de todo: um pouco de luz refratada pela atmosfera terrestre ainda vai chegar à Lua, que deve assumir uma coloração de tom vermelho-escuro).

Eclipses lunares são menos interessantes, do ponto de vista astronômico, que os solares, mas o eclipse da Lua tem um importante valor histórico: a forma arredondada da sombra da Terra, projetada sobre a Lua, era uma das provas de que o planeta devia ter formato esférico, citadas pelos antigos gregos.

Faz sentido: se a Terra  fosse chata, como um disco, a sombra só seria redonda em ocasiões especiais -- na maior parte das vezes, ela deveria aparecer meio alongada, como uma elipse.

Essa observação não só revela o prodigioso poder dos gregos para raciocínio dedutivo (determinar a forma da Terra a partir da sombra na Lua é um feito sherlockiano), como aparece numa frase geralmente atribuída ao navegador Fernão de Magalhães, "A Igreja diz que a Terra é chata, mas eu sei que ela é redonda. Pois vi a sombra da Terra na Lua, e tenho mais fé numa sombra do que na Igreja".


Agora, por mais que eu aprecie o sentimento -- de que evidência empírica e raciocínio claro devem sempre subjugar pronunciamentos de autoridade -- é preciso reconhecer que Magalhães provavelmente nunca disse nada do tipo. A frase aparentemente foi inventada pelo ateu americano Robert Ingersoll, um polemista e ensaísta que fazia meio que o papel de Richard Dawkins no século XIX.

A questão sobre qual era, afinal, a visão "oficial" da Igreja sobre a forma da Terra entre o fim da Idade Média e o início da Era das Navegações já rendeu um livrinho muito interessante, Céu e Terra na Idade Média, do medievalista alemão Rudolf Simek. Ele diz que a conclusão grega sobre a esfericidade do planeta provavelmente já era parte da educação do clero desde o século VIII, e que no século XIII a ideia já havia chegado a toda a população letrada (pequena como era).

Em seu livro Uma História da Guerra entre Ciência e Teologia na Cristandade, Andrew White -- ele também um proeminente crítico oitocentista da religião -- menciona pronunciamentos de teólogos do início do período medieval que se opunham à ideia de um planeta esférico. Esses defensores da Terra chata baseavam-se na descrição da criação no Gênese e na citação aos "cantos da Terra" que aparece nos Evangelhos de Marcos e Mateus.



Simek, no entanto, afirma que os autores mencionados por White eram largamente ignorados pelo mainstream do pensamento cristão europeu -- um deles, Cosmas de Alexandria, do século VI, só foi traduzido do grego para o latim no século XVII.

Então, de onde vem o mito de que os grandes navegadores -- Colombo, Magalhães -- sofreram oposição do establishment católico, que dizia que a Terra era chata, quando o establishment, embora famoso por dizer asneiras, nunca tenha dito exatamente essa? É que a questão da forma da Terra acabou confundida com a das Antípodas.

Antípoda, diz o dicionário, é um lugar diametralmente oposto a outro (sempre ouvi dizer que a antípoda do Brasil é  China, mas o fato é que um buraco cavado direto para baixo, a partir do Distrito Federal vai dar no mar das Filipinas; a antípoda de Pequim fica na Argentina, de acordo com este mapa). 

Em termos teológicos, a palavra se refere a uma candente questão medieval: a saber, se é possível haver seres humanos do outro lado do mundo, "onde o Sol nasce quando se põe para nós", nas palavras de Santo Agostinho. A opinião do Doutor da Igreja é: não.
Você pode acompanhar o argumento inteiro aqui, em inglês, mas a linha geral era a de que as todas as populações sobre o mundo são descendentes das setenta e duas nações nascidas a partir dos três filhos de Noé; alguma dessas nações viajou para o outro lado da Terra? Não. Caso encerrado.

Agostinho admitia a possibilidade de a Terra ser esférica, mas achava que, de acordo com as Escrituras, seria mais correto imaginar que do outro lado do mundo (no caso do teólogo, que escrevia na Argélia, isso significa o Togo e a Nova Zelândia) só houvesse um oceano desabitado.

E a opinião de Agostinho era levada a sério. O papa Zacarias I (741-152) chegou a declarar que a ideia da existência de homens outro lado do mundo era herética, porque "perversa e contrária à palavra de Deus". Ponto para a infalibilidade papal. 

(Sei que a infalibilidade só se aplica a pronunciamentos ex-cathedra sobre moral ou doutrina, mas declarar que algo é herético certamente é uma afirmação doutrinária, certo? Bem, então talvez não tenha sido ex-cathedra...)

Trezentos anos depois do papa Zacarias, teólogos questionavam como era possível que houvesse ainda povos desconhecidos e sem acesso ao Evangelho, se Jesus havia morrido por toda a humanidade. E assim por diante.

Confesso que não sei como a questão foi resolvida na doutrina, depois que ficou claro que tanto a América do Sul quanto a Austrália e a Polinésia tinham habitantes nativos. Suponho que tenha simplesmente sido varrida para debaixo do tapete, enquanto alguém assoviava para distrair os passantes. 

Comentários

  1. A visão da igreja era de que a terra não apenas era chata, mas era o centro do universo, e tanto a Lua quanto o Sol giravam em torno dela. Não tenho a menor idéia sobre como se explica um eclipse lunar neste modelo.

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  2. não importa o que a igreja disse (ou ainda diz...), mas interessante é que há 3800 anos atrás um escritor bíblico descreveu a terra como um círculo, ou esférica.

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