Ciência, saúde e a maldição do "personagem"
Acho que já fiz, no passado, um longo "rant" contra um vício particular que vem tomando conta do jornalismo na área de saúde, a saber, o de que toda matéria tem de girar em torno de um "personagem".
Partindo do pressuposto de que o leitor médio de jornais e revistas é incapaz de, ou está indisposto a, prestar atenção em qualquer narrativa um pouco mais complexa que um roteiro de telenovela, os editores passaram a exigir que virtualmente qualquer reportagem sobre doenças ou tratamentos tenha "personagem", e.g., uma pessoa que sofre da moléstia/passa pelo procedimento.
(Isso ajuda a explicar, entre outras coisas, a superpopulação de jovens mães na casa dos 30, estudantes universitárias, empresárias, jornalistas, publicitárias que infesta as narrativas midiáticas: o jornalismo é cada vez mais uma profissão feminina, e a busca insana por personagens acaba levando as autoras a "caçar" fontes em seu próprio extrato demográfico.)
Não estou dizendo, veja bem, que matérias jornalísticas construídas em torno de personagens devam ser banidas, ou que é impossível fazer bom jornalismo sobre pessoas e "histórias humanas" (existe outro tipo?). Também reconheço o poder do personagem individual em despertar ações e emoções: o perfil bem construído de uma só vítima de um desastre natural tem muito mais potencial de gerar solidariedade e consciência do problema do que uma tabela com os números de mortos e feridos. "Pôr uma cara nesse número" é uma estratégia eficaz de comunicação.
Estratégias eficazes de comunicação, no entanto, também são, ceteris paribus, ferramentas eficazes de desinformação e manipulação. E quando o assunto é saúde, desinformação é o tipo de coisa que acaba custando caro. Caso em tela: esta reportagem da BBC, sobre garoto desenganado pelos médicos que, aparentemente, se "curou" do câncer com o uso alternativo de uma caríssima terapia que não havia sido recomendada para seu caso.
Aqui seria o momento de inserir uma frase de efeito típica da crítica do jornalismo científico, "relato anedótico não é dado", ou invocar uma falácia clássica, a "post hoc". Mas, resumindo: sem um estudo detalhado, envolvendo um grande número de pacientes e controles estatísticos adequados, é impossível afirmar, em boa fé, que foi a terapia que salvou a vida do garoto (se é que ela foi salva: parece haver alguns tumores remanescentes).
O texto da BBC meio que admite isso, lá no fim, ao citar um médico que diz que não é possível atribuir a recuperação parcial do jovem a uma causa específica, mas encaixar o "disclaimer" depois de 15 parágrafos de mistificação é meio estranho. A história, enfim, não se sustenta como jornalismo de ciência ou saúde, mas apenas como "relato de personagem": temos o garotinho desenganado, sua avó amorosa, a cura. "Face humana", etc. Com o poder de estimular muita gente a vender tudo o que tem e correr para o México em busca de uma terapia que, no fim, talvez seja inadequada.
O foco narrativo no personagem que o jornalismo atual exige é exatamente o oposto da boa prática científica e, até, dos requisitos mais comezinhos da honestidade intelectual: sempre será possível contar histórias emocionantes sobre pessoas que se salvaram depois de fazer X, ou que sofreram horrores a despeito de terem feito Y.
Mas a verdadeira questão que o jornalismo, principalmente o jornalismo de saúde, deveria tentar responder é: o que essas histórias significam para a população em geral? O quanto são representativas? Qual probabilidade de que X ou Y produzam, no leitor desavisado, os mesmos efeitos que tiveram sobre o personagem? Isso não é algo que a tal "história humana", sozinha, vai dizer.
(Isso ajuda a explicar, entre outras coisas, a superpopulação de jovens mães na casa dos 30, estudantes universitárias, empresárias, jornalistas, publicitárias que infesta as narrativas midiáticas: o jornalismo é cada vez mais uma profissão feminina, e a busca insana por personagens acaba levando as autoras a "caçar" fontes em seu próprio extrato demográfico.)
Não estou dizendo, veja bem, que matérias jornalísticas construídas em torno de personagens devam ser banidas, ou que é impossível fazer bom jornalismo sobre pessoas e "histórias humanas" (existe outro tipo?). Também reconheço o poder do personagem individual em despertar ações e emoções: o perfil bem construído de uma só vítima de um desastre natural tem muito mais potencial de gerar solidariedade e consciência do problema do que uma tabela com os números de mortos e feridos. "Pôr uma cara nesse número" é uma estratégia eficaz de comunicação.
Estratégias eficazes de comunicação, no entanto, também são, ceteris paribus, ferramentas eficazes de desinformação e manipulação. E quando o assunto é saúde, desinformação é o tipo de coisa que acaba custando caro. Caso em tela: esta reportagem da BBC, sobre garoto desenganado pelos médicos que, aparentemente, se "curou" do câncer com o uso alternativo de uma caríssima terapia que não havia sido recomendada para seu caso.
Aqui seria o momento de inserir uma frase de efeito típica da crítica do jornalismo científico, "relato anedótico não é dado", ou invocar uma falácia clássica, a "post hoc". Mas, resumindo: sem um estudo detalhado, envolvendo um grande número de pacientes e controles estatísticos adequados, é impossível afirmar, em boa fé, que foi a terapia que salvou a vida do garoto (se é que ela foi salva: parece haver alguns tumores remanescentes).
O texto da BBC meio que admite isso, lá no fim, ao citar um médico que diz que não é possível atribuir a recuperação parcial do jovem a uma causa específica, mas encaixar o "disclaimer" depois de 15 parágrafos de mistificação é meio estranho. A história, enfim, não se sustenta como jornalismo de ciência ou saúde, mas apenas como "relato de personagem": temos o garotinho desenganado, sua avó amorosa, a cura. "Face humana", etc. Com o poder de estimular muita gente a vender tudo o que tem e correr para o México em busca de uma terapia que, no fim, talvez seja inadequada.
O foco narrativo no personagem que o jornalismo atual exige é exatamente o oposto da boa prática científica e, até, dos requisitos mais comezinhos da honestidade intelectual: sempre será possível contar histórias emocionantes sobre pessoas que se salvaram depois de fazer X, ou que sofreram horrores a despeito de terem feito Y.
Mas a verdadeira questão que o jornalismo, principalmente o jornalismo de saúde, deveria tentar responder é: o que essas histórias significam para a população em geral? O quanto são representativas? Qual probabilidade de que X ou Y produzam, no leitor desavisado, os mesmos efeitos que tiveram sobre o personagem? Isso não é algo que a tal "história humana", sozinha, vai dizer.
E não só na saúde, Carlos. Na TV, em especial, não há nenhum assunto, nem mesmo os mais técnicos, que possa ser noticiado sem incluir a "opinião" da dona Maria, que ninguém sabe quem é nem porque foi escolhida para representar a opinião do público.
ResponderExcluirIsso é conseqüência de uma cultura aparente, criada por um sistema primário senhor X escravo, onde alimentar o "admitir porque admitem", é ferramenta para manter a inconsciência dos subjugados e o concomitante poder dos que subjugam (que assim fazem, por serem, tal como os subjugados, primários, culturalmente). Meus cumprimentos pela postagem!
ResponderExcluirestou de acordo contigo. Também percebo que levaram ao clichê a recomendação de "humanização" do jornalismo científico e suas ramificações. Muito boa sua discussão.
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