Ladies and Gentlemen: o provável bóson de Higgs

Numa nota à imprensa divulgada nesta madrugada, o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN) anunciou que dois experimentos do Grande Colisor de Hádrons (LHC) encontraram "uma nova partícula com massa entre 125 e 126 GeV". Essa "nova partícula" é provavelmente a peça que faltava para completar o Modelo Padrão das partículas elementares, o bóson de Higgs.

(A unidade usada, giga-elétron-volt, é na verdade uma medida de energia, mas massa e energia podem ser convertidas uma na outra via E=mc2. Os 126 GeV correspondem, se não errei na contagem dos zeros, a 0,0000000000000000000002 gramas.)

Sei que para a maioria das pessoas o grande evento histórico desta quarta-feira é o jogo do Curíntia, mas tentemos pôr a questão do bóson de Higgs em perspectiva, pois não? vamos lá: o Modelo Padrão é uma grande teoria, elaborada ao longo do século passado, que explica as relações entre luz, eletricidade e as forças que atuam no núcleo do átomo. O Modelo Padrão é, ao fim e ao cabo, o arcabouço sobre o qual se sustentam a química, a biologia, a eletrônica e tudo o que sabemos sobre radiação e a respeito da estrutura fundamental da matéria.

Sendo uma teoria científica, o Modelo Padrão busca ser consistente e fazer previsões. "Consistente" quer dizer que ele não admite contradições: se uma parte do modelo diz, digamos, que todas as bananas maduras são amarelas, não pode haver outra parte dizendo que algumas bananas maduras são azuis. Quanto a fazer previsões, isso significa que o modelo afirma que certas coisas devem produzir certas consequências.

Isso não só é a base de muita tecnologia -- já que máquinas são criadas com base em previsões teóricas -- como também significa que o modelo é testável: se ele prevê uma determinada consequência e ela não ocorre, isso significa que há algo errado com ele (porque, afinal, o modelo deve ser consistente, e portanto não pode cair em contradição). A existência do bóson de Higgs é uma previsão deduzida do Modelo Padrão há 50 anos.

Cinco décadas. Difícil descrever a dimensão do triunfo: que mentes humanas tenham deduzido a existência de um componente fundamental do cosmo meio século antes de existir a tecnologia necessária para observá-lo.

Um triunfo, sem dúvida. No entanto, a nota do CERN diz que mais estudos ainda serão necessários para determinar se a nova partícula é mesmo o bóson previsto por Peter Higgs e colegas há 50 anos, já que suas propriedades ainda precisam ser melhor estudadas. A nota afirma que o sinal encontrado é "dramático", e que a presença da nova partícula é certa. Mas, será ela o bóson previsto?

Para além da questão da cautela protocolar, há outra razão para o suspense: o fato de que o Modelo Padrão, a despeito de todos os seus sucessos, é incompleto. Ele não dá conta da matéria escura que envolve as galáxias; não explica e energia escura que acelera a expansão do Universo; não integra a descrição da gravidade dada pela Teoria da Relatividade Geral. Seja ou não o Higgs, a nova partícula do CERN deverá representar uma ponte entre o Modelo Padrão limitado que temos hoje e alguma outra teoria, a fantástica física do amanhã.

Cada mistério resolvido, afinal, abre a porta para novas questões: todo novo conhecimento traz, consigo, a consciência de dimensões de ignorância que não havíamos notado até então. Mal comparando, é preciso primeiro saber que a China existe para, então, perceber que não se sabe falar chinês.

Seja ou não o Higgs previsto na teoria, a nova partícula de 125 GeV é um pedaço do Universo que ignorávamos até agora, um ingrediente da realidade que vivia escondido de nossos olhos. Assim como a Ilha de Hispaniola prefigurou o continente americano para Colombo, a partícula do CERN, seja ela o Higgs ou alguma coisa ainda mais exótica, aponta o caminho para territórios ainda inexplorados pela ciência: é o buraco da fechadura na porta que separa o que sabemos hoje daquilo que saberemos amanhã.

Comentários

  1. Parabéns ao CERN e ao escritor ae!!
    Belo texto hein chapa!!! hehehe

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  2. Melhor texto sobre o assunto. Parabéns!

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  3. Orsi, texto excelente, parabéns!

    Em compensação, pobres dos leitores de outros meios, olha só a pérola que eu encontrei no Estadão: "... trata-se da última fronteira não resolvida pela física." Ou seja, poderemos fechar as universidades, não acha?

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    1. Sem falar na insistência do jornal em usar aquele apelido infame. Deve ser inveja da Veja!

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  4. Belíssimo texto, Orsi, já devidamente compartilhado!

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