Big Bang, questão de fé?



Existe um argumento que volta e meia aparece reciclado em discussões online -- mais recentemente, encontrei-o no twitter, que é uma plafatorma exasperante para discutir esse tipo de coisa, já que lá todo raciocínio se reduz a uma sucessão de slogans -- que é o da boa e velha "fé na ciência". Ele assume diversas formas e, como costuma acontecer, se presta a diversos tipos de prestidigitação semântica.

A linha geral, por trás da maioria dessas formas, é a de estabelecer uma espécie de situação de terra arrasada: eu acredito na minha ciência, você acredita no seu deus, e nenhuma crença é melhor ou pior que a outra, porque, no fundo, todas se baseiam em fé. O problema começa já na hora de definir o que "fé" quer dizer neste contexto -- seria confiança? crença pura e simples? ou crença irracional?

Tomando "confiança" como exemplo, a situação se agrava quando tentamos definir o que se quer dizer com "confio na ciência".

Isso pode significar, confiança no establishment científico (universidades, periódicos com peer-review, o comitê do Prêmio Nobel); confiança no corpo atual de conhecimento científico (Teoria da Relatividade, Evolução por Seleção Natural, Modelo Padrão das partículas elementares); e confiança nos métodos e processos da ciência (empiricismo, lógica, busca por evidências, por simplicidade, livre circulação de críticas e informações, reprodutibilidade). Falando por mim mesmo, confio muito na terceira opção, razoavelmente bem na segunda e, sim, acho que a primeira até que dá para o gasto.

E será que algum desses graus de confiança é irracional?

Na iteração mais recente do argumento a que fui exposto -- via twitter; a elaboração talvez não seja, portanto, a ideal -- a frase, referente ao Big Bang, veio da seguinte forma (dei um tapa na redação, para descompactar o formato espremido de 140 caracteres): "Um evento de força e causa desconhecidas em que se pressupõe o ocorrido com base no que se acredita mas não se prova, também é fé".

Neste caso, então, o que se afirma é que a crença no modelo do Big Bang é um ato de fé porque a grande explosão seria um evento de causa desconhecida; apenas pressuposto; e sem provas. Suponho, portanto, que a definição operacional de fé, neste contexto, seja "crença sem provas". O argumento se sustenta?

Não. Por quê? Vejamos: começando pelo mais simples, "causa desconhecida" não significa "sem provas". Durante milhares de anos a humanidade desconheceu a causa da varíola, mas havia ampla evidência da realidade da doença. É perfeitamente possível haver provas de um efeito, mesmo que sua causa esteja envolta em mistério (incontáveis episódios de seriados de TV dependem dessa premissa, aliás).

Agora, a ideia de que o Big Bang é apenas pressuposto. Durante um bom  tempo, isso até foi verdade. Quando George Lemaître propôs a hipótese de que o Universo teria se expandido a partir de um "átomo primordial", em 1931, ela era uma suposição consistente com a Teoria da Relatividade Geral -- isto é, uma possível consequência lógica das leis descobertas por Einstein. Como essas leis, até onde sabemos, estão corretas, uma proposta compatível com elas também tem chance de estar correta.

Mesmo nesta fase de "mero pressuposto", a opção de aceitar o Big Bang como um modelo de trabalho não era uma "crença sem provas". As provas estavam nos cálculos de Lemaître, na consistência com a Relatividade Geral e, algo que eu ainda não havia citado, na observação de que o Universo encontra-se em expansão. Algo que está crescendo ao longo do tempo deve, por definição, ter sido menor no passado. E menor ainda antes disso. E menor. E menor. E...

Durante algum tempo, no entanto, outras propostas pareciam capazes de dar conta dos mesmos fatos cobertos pelo "átomo primordial" de Lemaître.

Da mesma forma que o som de uma criança chorando no apartamento ao lado dá margem a várias explicações possíveis -- alguém está imitando uma criança; a TV do vizinho está ligada num canal onde tem uma criança chorando; há mesmo uma criança chorando presente no local -- as observações e cálculos também podiam ser explicados por outros modelos, como o do estado estável  estacionário, que propunha uma criação constante de matéria no interior do espaço-tempo.



A tese do estado estável estacionário, no entanto, começou a sofrer reveses cada vez maiores, primeiro com a descoberta de que certos corpos astronômicos (como quasares) eram mais abundantes no passado, o que sugere que o Universo muda com o passar do tempo (em contradição ao conceito de estabilidade eterna) e depois com o encontro do pano de fundo cósmico de micro-ondas, que pode ser explicado como o brilho do Big Bang, desgastado após uma viagem de 14 bilhões de anos.

Então, o Big Bang é aceito "sem provas"? Bem, temos, pela ordem, três fatos observáveis e observados: a expansão do Universo; o dado de que o Universo era diferente no passado; e as micro-ondas de fundo. Além, claro, da compatibilidade teórica com a Relatividade Geral.

Existem, claro, problemas ainda a serem resolvidos: não sabemos por que o Universo se encontrava num estado de "átomo primordial" há 14 bilhões de anos, por que começou a crescer, nem mesmo se ele havia passado por outros estados mais interessantes antes de virar um pontinho (ou, até, se faz sentido falar em um "estado anterior" à Grande Explosão).

Mas reconhecer ignorância não significa abrir espaço para o sobrenatural ("foi deus que  fez"). Significa que, ou mais trabalho é necessário, ou chegamos ao limite do cognoscível. O que só poderemos afirmar, de fato, com mais trabalho. O LHC, o Hubble e um monte de outros instrumentos estão aí pra isso.

Alguns cosmólogos flertam com a possibilidade de o "nosso" Universo ser uma bolha em meio a uma espuma infinita de espaço e tempo, com outros Universos borbulhando em existência ao nosso redor, mas todas essas propostas serão avaliadas, ao fim e ao cabo, pelos méritos de prova e consistência, e não aceitas ou rejeitadas por "fé".


Comentários

  1. Ótimo artigo, Carlos. Vou recomendar a todos os cantos da internet. Parabéns!

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  2. Li o livro "O Grande Projeto", do Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, que fala a respeito dos instantes iniciais do Big Bang e do que poderia tê-lo detonado.

    É sensacional como conseguem simplificar a física até para os leigos.

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  3. so pode existir duas hipoteses para o big bang, ou o nada criou o tudo do nada....ou Deus criou o tudo do nada....

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