Diploma obrigatório para jornalista: soy contra

Parece que o lobby da categoria está forte, e a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista vai voltar. Como jornalista profissional diplomado, formado, lá se vão quase 20 anos, pela pujante Escola de Comunicações e Artes da insigne Universidade de São Paulo, portador de diploma de bacharel em Comunicação Social habilitado para o exercício do Jornalismo devidamente registrado no Ministério do Trabalho (MTb 23.563, de 17 de novembro de 1993), sou provavelmente um dos supostos "beneficiados" pela volta do diploma obrigatório. O que não me impede de dizer que considero a medida uma asneira de proporções colossais, continentais, quiçá, até, cósmicas.

Para quem é de fora, talvez seja difícil entender as paixões que correm, entre os jornalistas, em torno do tema. Nos sindicatos e outros órgãos de representação da categoria, a necessidade do diploma é um dogma, tão sólido quanto o da virgindade de Maria entre os católicos. 

Quando um sindicato de jornalistas convoca um "debate sobre a questão do diploma", o que se tem não é o que o nome sugere (uma discussão a respeito da conveniência, para a sociedade brasileira, da existência do curso superior específico ou da obrigatoriedade burocrática do documento de conclusão), mas uma série furiosa de diatribes sobre como a sacrossanta obrigatoriedade deve ser mantida a qualquer custo.

Antes de prosseguir, devo confessar que sempre desconfiei de regulamentações profissionais. Sistemas criados sob o pretexto de proteger a sociedade em geral dos incompetentes e dos charlatões quase que inevitavelmente acabam fazendo o contrário: protegendo os incompetentes e charlatões contra a sociedade em geral. 

Até acho que, em alguns casos, a regulamentação é um mal necessário para dar algumas garantias mínimas à sociedade -- é reconfortante, para dizer o mínimo, poder imaginar que o médico que consultamos familiarizou-se com os rudimentos da anatomia humana, ou que a casa em que moramos foi projetada com algum respeito às leis da Física -- mas o fato de alguém ser portador de um diploma de Jornalismo garante o quê, exatamente? Que se sabe conjugar o verbo "haver"? Nem isso.

A exigência do diploma de Jornalismo nunca funcionou como filtro de qualidade. Ela só criava dificuldades artificiais que serviam para alimentar um pujante mercado de facilidades -- no caso, faculdades meia-boca que descarregavam semianalfabetos diplomados no mercado à taxa de centenas a cada ano. 

Existe ainda um mito de que um aviltamento da profissão de jornalista se seguiu à abolição, pelo STF, do diploma obrigatório. Esse "aviltamento" pode ser interpretado de duas formas -- do profissional (agora "qualquer um" pode ser jornalista) ou das condições de trabalho (agora os patrões podem "fazer o que quiserem" com os profissionais). Eis aí dois argumentos que, sério, fazem-me rir.

Primeiro, o do "qualquer um": tendo trabalhado mais de 15 anos na profissão antes do fim do diploma obrigatório, posso confirmar que a proporção de semianalfabetos nas redações não aumentou. A única diferença é que, antes, eram todos semianalfabetos com diploma

Segundo, o aviltamento pelos patrões: redações cheias de moleques entusiasmados dispostos a trabalhar por uns trocados para o busão e pela adrenalina de ver o nome no alto da página, deixando-se explorar imbecilmente em jornadas desumanas de 12 horas ou mais, não foram inventadas com o fim do diploma obrigatório. Eu sei, porque fui um desses moleques, assim como boa parte dos meus colegas (diplomados) de geração. A única diferença, hoje, é que os jovens não são, necessariamente, estudantes de jornalismo. 

Grande coisa. 

O jornalismo só deixará de ser uma profissão predatória e aviltada quando os jornalistas criarem tutano, e para isso o diploma é irrelevante. Tenho dificuldade em entender como o mesmo tipo de cara que peita uma tropa de jagunços em Rondônia para escrever sobre trabalho escravo depois se caga de medo do patrão, na hora de contemplar a possibilidade de fazer greve, ou de se recusar a cobrir férias de graça. Mas isso é problema para psicoterapeuta, coisa que diploma nenhum resolve.

Existe, claro, a possibilidade de que o diploma funcione como reserva de mercado: inútil para evitar a contratação de analfabetos e invertebrados, ao menos limitaria o número de analfabetos e invertebrados disponíveis no mercado, o que tende a fazer subir o preço da unidade. Mas essa é uma justificativa mesquinha, que interessa apenas à banda medíocre da corporação. E subestima a pressão de mercado por mais (e piores) faculdades.

Por fim: é perfeitamente concebível que um curso de jornalismo em nível de bacharelado seja capaz de pegar um jovem vocacionado para a área e, a partir dele, oferecer ao mercado e à sociedade um profissional melhor do que esse mesmo jovem seria, se tivesse cursado alguma outra coisa, ou mesmo se não tivesse cursado nada.

Desde a discussão crítica do papel da comunicação de massa na civilização contemporânea -- para criar um profissional consciente do poder da arma que tem nas mãos -- até a instrução em coisas comezinhas como lógica e pensamento crítico, passando por uma boa bateria de disciplinas de outras áreas, como economia, ciências, artes; até a experiência do fazer jornalístico sob a orientação didática de pensadores da área e de profissionais tarimbados.

Mas o diploma obrigatório não estimula a criação de cursos assim, muito antes pelo contrário: o que a imposição cartorial faz é estimular o surgimento de lojas de diploma, mimeógrafos de títulos mais preocupados em explorar brechas no sistema de credenciamento do MEC do que em formar bons profissionais.

O diploma obrigatório é um erro, e o tão criticado fim da obrigatoriedade não passa de um espantalho, um bode expiatório para mazelas que são muito anteriores à abolição -- e que não serão resolvidas, nem mesmo mitigadas, com a volta do carimbo burocrático.

Comentários

  1. Concordo³. É muito raro ler um texto sóbrio sobre esse tema. Os colegas jogam pra torcida o tempo todo.

    Sempre achei que, com dedicação, um economista poderia ser um bom jornalista da área econômica, ou qualquer profissional especializado em outra área. Você colocou a questão na perspectiva correta.

    Muito bom, Orsi!

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  2. Como permitir que os meios de comunicação dêem voz a quem não passou pela doutrinação obrigatória de nossas universidades? Capaz até que algum deles seja contra o governo. Muito perigoso, isso. Melhor proibir.

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  3. Aproveitando o assunto, o senado aprovou uma cota de 50% para alunos de escola pública nas universidades.

    Destaque para a posição isenta e nada preconceituosa do senador (visivelmente avesso a estereótipos) Paulo Paim:

    "Não é justo que o preto e pobre trabalhe de dia para pagar a universidade e estudar à noite enquanto o branco descansa o dia todo"

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    1. Mas não tem um pouco de verdade nisso?

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    2. Oi, Anônimo das 13:48. Não tem nenhuma verdade nisso. É um truque retórico (aliás, um truque retórico vagabundo). Porque, dessa forma, por exemplo, você pode fingir que não existem brancos pobres (vá ao Rio Grande do Sul e veja quantos negros moram em favelas...). A generalização contida nessa frase estúpida e preocnceituosa é extremamente danosa. Existem negros que trabalham, que descansam, que vagabundeiam, da mesma forma que brancos, japoneses, índios etc..

      Traduzindo e resumindo: existem pessoas que trabalham e outras que não trabalham. Que estudam e outras que não estudam. Ah, e de qualquer cor (dizem que, apesar da cor, são todos seres humanos, mas parece que esse sujeito aí eleito não tem noção disso).

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    3. Eu prefiro que um senador, ao tratar de leis, siga parâmetros mais elevados do que expressar preconceitos com "um pouco de verdade".

      Senão, qual seria o mínimo necessário de "verdade" para que um preconceito seja legitimado?

      Digamos que eu afirme: "Todo alemão gosta de batata." Tem "um pouco de verdade", já que deve haver alemães que gostam de batata. Isto torna a afirmação aceitável?

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  4. Troca "jornalista" por "designer" e ainda continua fazendo sentido. Eu, como profissional diplomada em uma área em que não se exige diploma (design gráfico), concordo com absolutamente tudo.

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  5. Concordo com a Fabiane, mas no caso troca "jornalista" por "profissional de TI". Nenhuma das funções de tecnologia (help desk, suporte técnico, programador, DBA, ...) exige diploma pra contratação, e sempre foi assim.
    Vejo uma legião de "sobrinhos do gerente" ocupando vagas que deveriam ser de gente muito mais qualificada.
    Por outro lado, vejo as empresas sérias valorizando cada vez mais o profissional qualificado (sobrinho do gerente ou não), que se preocupa com sua formação fazendo não só faculdade, como cursos de aperfeiçoamento e atualização. Essa é uma tendência mais ou menos recente no mercado, coisa de uns 10 anos pra cá.
    Apesar disso, ressalto que nenhum curso universitário é capaz de imputar vocação a quem quer que seja - os cursos universitários de TI, super procurados, tem taxas de evasão altíssimas.
    Obviamente, diploma de faculdade nenhuma (conceituada ou não) garante o emprego de gente sem habilidade pra coisa, mas ainda assim o mercado está infestado de incapacitados que garantem o seu sustento com base no déficit de bons profissionais.

    Enfim... falei demais. O ponto que eu queria levantar é que, cedo ou tarde, acredito que o mercado de comunicação (e o de design também, Fabiane) acabarão por seguir o mesmo caminho.

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    1. Já segue. Quem tem muito medo de não-diplomados tomarem seu emprego é, no mínimo, incompetente.

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