Noite de lua cheia...

Lon Chaney Jr. como o Lobisomem
Se meu novo relógio digital (que, entre outras peculiaridades, fica piscando a palavra "FISH" em certas horas do dia, suponho que para me dizer que é uma boa hora para pescar) estiver correto, nesta semana temos lua cheia. Com isso, é bem possível que muita gente -- incluindo aí profissionais sérios, como policiais, médicos e enfermeiros -- esteja se preparando para um aumento no número de ocorrências como partos, crimes, crises psicóticas.

Esse efeito lunar é largamente registrado, também, na ficção, e não só em histórias de lobisomem: no romance Moscou contra 007, o vilão, o impiedoso assassino anglo-soviético Red Grant, é um psicopata insensível cuja ânsia de matar acompanha o ciclo das fases da lua, tornando-se irresistível na lua cheia. É extremamente interessante notar, portanto, que o efeito é completamente falso. Anos e anos de estudos estatísticos nunca encontraram uma única correlação clara entre as fases da lua e eventos ou comportamentos "lunáticos".

O trabalho mais recente a respeito foi divulgado há uma semana. Realizado por uma universidade canadense, ele buscou correlacionar, às fases da lua, as visitas de centenas de pessoas -- entre 2005 e 2008 -- com ataques de pânico, crises de ansiedade e distúrbios de personalidade ao serviços de emergência de dois hospitais. A única correlação encontrada foi uma queda de 32% no número de ataques de ansiedade durante a lua minguante, mas os próprios autores admitem que isso pode ser uma coincidência.


Red Grant, psicopata lunar, espanca James Bond
Este é, claro, apenas um estudo, mas em 1996 uma avaliação de mais de 100 trabalhos realizados a respeito do efeito da lua determinou que não há indício de que a fase lunar interfira com a taxa de homicídio, taxa de suicídio, acidentes de trânsito, ataques epiléticos, internações psiquiátricas e, mesmo, episódios de vampirismo e licantropia.

 Se não há correlação real, então, por que tanta gente acredita que as fases da lua, principalmente a lua cheia, estejam relacionadas a fenômenos tão diversos quanto violência, loucura e fertilidade humana?

Um motivo é tradição -- as pessoas ouvem falar que a lua tem algo a ver com isso ou aquilo, assimilam a informação e não se dão ao trabalho de checar. Outro, fortemente ligado ao primeiro, é o viés de confirmação, um vício cognitivo que faz com que tendamos a prestar mais atenção em eventos que confirmam nossos preconceitos.

Se você acredita -- a exemplo do apóstolo Paulo (supondo que ele tenha mesmo sido o autor das Pastorais) -- que todos os cretenses são mentirosos, sua tendência será registrar como significativa cada mentira que um cretense disser enquanto você estiver por perto, e a descontar como insignificantes, ou mesmo ignorar, todas as observações verdadeiras.

Aplicado à questão das fases da lua, esse viés faz com que as pessoas acostumadas a esperar eventos bizarros prestem mais atenção a ocorrências estranhas durante a lua cheia.

Lua cheia e o Lobisomem da Marvel
Muitas vezes, a chave está na força da associação mental: um homicídio ou um parto durante a lua cheia fica gravado na memória junto com a fase lunar, enquanto que homicídios e partos em outros períodos são, simplesmente, homicídios e partos, não atingindo o status de, por exemplo, "assassinatos da lua em quarto-crescente". É para contornar esse tipo de viés, entre outras coisas, que a humanidade aprendeu a usar estatísticas.

Algumas pessoas tentam escorar a crença no poder da lua cheia mencionando o efeito da lua sobre as marés. Esse efeito é, obviamente, real, mas depende da força da gravidade. Mas a gravidade é uma força proporcional ao produto das massas dos corpos envolvidos, e inversamente proporcional ao quadrado da distância.

Assim, a lua, que pesa algo da ordem de 70 milhões de trilhões de toneladas, e os oceanos da Terra, que pesam algo como 1 milhão de trilhões de toneladas, produzem, com uma certa ajuda do Sol, força grande o bastante para gerar as marés, à distância de mais ou menos 340 mil quilômetros. Agora, a massa de um corpo humano adulto -- digamos, 70 kg -- combinada à massa da lua, nessa mesma distância, não gera uma força perceptível. A atração gravitacional de um mosquito sobre o seu braço é maior que a da lua.

[Adendo: esta postagem incluía a alegação de que a atração gravitacional de um mosquito pousado no braço, sobre o corpo humano onde o braço está ligado, seria maior que a da Lua. Isso está erado, como foi notado nos comentários (um erro de cinco ou seis ordens de magnitude). A alegação original é, na verdade, uma versão um tanto quanto degenerada de um trecho de um artigo do astrônomo George O. Abell, que de fato usa um mosquito para construir seu argumento sobre a fraqueza da in fluência lunar, mas de modo mais sofisticado. Para quem quiser uma versão mais detalhada do caso do "mosquito gravitacional", há um artigo interessante aqui].

Comentários

  1. Sei que é chato, mas: Você quis dizer: Confirmação ?

    (importante pois é justamente na primeira vez que aparece no texto).

    Fora isso bom texto sobre meu vício cognitivo "preferido"

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    1. "Confirmação", isso, obrigado! Um dia ainda aprendo a conferir toda a digitação direito antes de publicar...

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  2. Vale notar que as forças de maré são mais significativas em corpos extensos -- oceanos, por exemplo -- do que em corpos de comprimento reduzido (como o cérebro humano).

    Abraços,
    Daniel Bezerra

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  3. Muito bom o texto, mas, pensando na parte sobre checar a informação, que você menciona, os cálculos não estão batendo com o que aparece no final do texto. A atração do mosquito é bem menor.

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    1. Ops! Confesso que não fiz a conta. Esse dado eu levantei, na confiança, de uma citação do Skepdic. Talvez tenha faltado contexto (ou talvez esteja errado, mesmo). Vou checar. Grato pelo aviso!

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    2. Retificação feita... Mais uma vez, obrigado!

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