O "papabile" criacionista e o fantasma do design


Agora a eleição já passou e tudo, mas fica a curiosidade: um dos cardeais tidos, até a semana passada, como um dos "favoritos" para assumir o comando do Vaticano, o austríaco Christoph Schönborn, havia causado um certo furor, alguns anos atrás, ao assinar um artigo no New York Times afirmando que o darwinismo, em sua formulação atual  (o "dogma neo-darwinista", como o cardeal chama), é filosoficamente incompatível com o magistério da igreja católica.

Schönborn, que mais tarde publicaria um livro sobre sua visão do assunto, Chance or Purpose? Creation, Evolution and a Rational Faith, está longe de ser um "six-day creationist", o tipo de sujeito que acha que o capítulo 1 do Gênese deve ser interpretado literalmente. Magnanimamente, ele concede, em seu texto para o NYT, que a igreja de Roma "deixa para a ciência muitos detalhes sobre a história da vida na Terra", e que "a evolução, no sentido de uma ancestralidade comum, pode ser verdadeira". Mas, em seguida, ataca: "no sentido neo-darwiniano -- um processo caótico e sem planejamento de variação aleatória e seleção natural -- não é".

E por quê? Porque "a Igreja Católica (...) proclama que, pela luz da razão, o intelecto humano pode, de modo claro e imediato, discernir propósito e planejamento no mundo natural, incluindo no mundo das coisas vivas". O argumento do cardeal põe o dedo na ferida, no ponto crucial de incompatibilidade -- ou, vá lá, de desconforto -- entre a teoria da evolução e as religiões de matriz judaico-cristã-islâmica: a questão do impacto do darwinismo sobre o que se convencionou chamar de teologia natural.

"Teologia natural" é a ideia de que a existência de uma divindade pode ser deduzida da natureza. Embora, digam os teólogos, seja necessária uma revelação sobrenatural para informar a humanidade de alguns detalhes a respeito das intenções e do caráter dessa divindade (tipo, ela não gosta de prepúcios), sua presença -- ou, no mínimo, sua inteligência criativa -- seria autoevidente para qualquer um que não seja idiota, louco ou turrão demais para acatar a evidência dos próprios olhos.

O que o darwinismo faz, nesse contexto, é desmontar a aparente cogência dos apelos à teologia natural: se a "evidência dos próprios olhos" pode ser explicada pelo processo de evolução por seleção natural, então a divindade torna-se supérflua. Ou, como escreve A.C. Grayling em seu The God Argument: The Case against Religion and for Humanism, a partir do instante em que há uma explicação natural para a cor das flores, não precisamos mais imaginar que são fadas invisíveis que pintam as pétalas de amarelo e de vermelho. Isso não prova que fadas invisíveis não existem, mas elimina uma das razões que tínhamos para supor que existiam.

Não que a teologia natural fosse inatacável antes disso: incluindo Demócrito e David Hume, vários filósofos duvidaram, antes de Darwin entrar em cena, da ideia de que o mundo natural apontava para a necessidade de um criador. Hume, especificamente, chamou a atenção para o fato de que a analogia entre deus/relojoeiro e natureza/relógio, se realmente fosse levada a sério, indicaria a existência não de uma divindade única onipotente, mas de uma oficina de deuses, sendo um projetista, um vidraceiro, um metalurgista, etc.

Mas foi a ideia de evolução por seleção natural, e as seguidas provas de que o processo funciona como criador de complexidade e da aparência de projeto, que puxou de vez o tapete de debaixo dos pés dos teólogos naturais.

A partir de então, o antigo argumento do design -- demonstrar a existência da divindade apontando para os sinais de projeto inteligente na natureza -- teve de ser dividido em dois: primeiro, um argumento pelo design -- a tentativa de demonstrar que há um projeto racional por trás da natureza -- seguido do velho conhecido, o argumento do design, que busca determinar que o projetista é a divindade onipotente e não uma alternativa menos espantosa, como a comezinha oficina de artesãos de Hume.

O cardeal Schönborn conclui que a evolução por seleção natural é incompatível com o catolicismo porque, para ele, a necessidade de um argumento pelo design é impensável. O design está aí, e pronto. Ele cita o catecismo: "A inteligência humana já é certamente capaz de encontrar a resposta para a questão das origens. A existência de Deus Criador pode ser conhecida com certeza através de suas obras, pela luz da razão humana". O que o leva à conclusão de que "qualquer sistema que negue ou busque dispensar a esmagadora evidência de design na biologia é ideologia, não ciência".

Uma resposta seria que qualquer sistema que busque afirmar a presença de design na biologia, dada a esmagadora evidência de evolução por seleção natural é dogma, não ciência, mas dogma-não-ciência é precisamente o negócio do cardeal, então a coisa fica meio tautológica.

Claro, nem toda reação ao impacto do darwinismo sobre a teologia natural se resume a negação dogmática. O movimento pseudocientífico do Design Inteligente foi -- ainda é -- uma tentativa de escorar um argumento pelo design, com resultados sofríveis.

É importante notar que a evolução por seleção natural só chuta o banquinho de debaixo de um tipo de argumento teísta, o proposto pela teologia natural. Há outros, como os argumentos a priori ou os baseados em revelação, que também não funcionam, mas sobre os quais a evolução nada tem a dizer.

Só que a teologia natural tem um apelo formidável, o que faz com que seja difícil abandoná-la. Se estiver correta, ela pode ser universalizável, como a ciência é. De fato, se a existência da divindade puder ser deduzida dos fatos concretos do mundo, então a divindade passa a ser um dado tão científico quanto átomos e moléculas. Por conta disso, uma espécie de espectro dos argumentos pelo design e do design permanece, mesmo nas discussões mais sofisticadas, sem jamais ser exorcizado de fato.

Há algumas manobras usadas para mantê-lo assombrando corações e mentes, embora me pareçam um tanto quanto duvidosas -- não apenas em eficácia, mas também em termos de honestidade intelectual. Chamo essas manobras de argumento de segunda ordem, argumento cosmológico e dúvida razoável.

O argumento de segunda ordem é uma espécie de judô retórico, já que tenta usar a ausência de design para demonstrar a presença de design. Funciona mais ou menos assim: "A evolução por seleção natural é um processo tão elegante e inteligente! Cria complexidade sem design. Quem teria inventado isso?" A resposta, claro, é que ninguém inventou a evolução -- ela é o resultado emergente da existência de sistemas que fazem cópias imperfeitas de si mesmos em ambientes de recursos finitos.

O argumento cosmológico vai um passo além: e quem estabeleceu as condições iniciais do Universo para permitir que houvesse sistemas replicadores? Essa pergunta, embora possa ter valor científico -- haverá um princípio geral organizador por trás das leis da natureza? -- me soa, quando formulada em tom de apologia teísta, muito semelhante à questão de quem projetou o nariz humano, para permitir que ele acomodasse óculos. Em outras palavras, até onde sabemos são os replicadores que estão aí por causa do Universo, e não o contrário.

Por fim, o apelo à dúvida razoável: mas não dá para afirmar com certeza que não há um guia por trás da natureza! O que é verdade, mas a ideia de que a margem de dúvida gerada por essa constatação seja, de fato, "razoável" é, no mínimo, duvidosa. Afinal, também não dá para afirmar com certeza que não existem lojas McDonald's na Galáxia de Andrômeda, por exemplo. Aliás, não dá nem para afirmar com certeza que uma queda de nove andares seja fatal. Mas certeza e razoabilidade são, no fim, critérios bem diferentes.

Comentários

  1. Muito interessante o texto, o único ponto que gostaria de comentar é sobre a causa e efeito, pois feynman mostrou que o efeito pode presidir a causa no espaço quântico, seria possível que no espaço macroscópico algo do tipo poderia acontecer? se for o caso possivelmente não deve ser fácil sustentar a evolução, pois considerando isso a própria humanidade poderia ter criado o universo no futuro para que ele fosse assim e não de outra maneira.

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    1. Acredito que a sua ideia indique aquela teoria sobre a divindade criadora ser a integração de todos os elementos complexos-conscientes, do qual dizem que no futuro evoluiremos a seres pandimensionais e que seremos centralizados por um vórtice formando a célula Unicelestial. É, é uma viagem, mas que é sustentada por Feynman e Heisenberg.
      Mas pensando em termos de design de um mega projeto que seria criar os princípios replicadores do Universo, a Vida e Tudo mais numa "volta à gênese" teria que considerar como variável a condição de uma nova camada dimensional criada temporariamente para a transição, o que anularia a integração divina...

      Mas aí, esses teólogos teriam que dobrar os joelhos mais aos cálculos e a ciência do que simplesmente se emocionar num domingo de manhã.

      MMO

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    2. No terreno quântico, um elétron pode passar por duas fendas ao mesmo tempo. No mundo macroscópico, não existe o análogo: uma bola de tênis, por exemplo, não passaria por dois buracos na parede ao mesmo tempo. Não dá pra transpor regras quÂnticas pro mundo macroscópico de objetos grandes do dia a dia. Fosse isso possível, essas regras teriam sido descobertas por outros antes dos pais da mecânica quântica e não precisaríamos ter esperado até o início do século XX por uma mecânica quântica. Essa estória de vórtice e célula unicelestial tem cheiro forte de pseudociência (duvido que Feynman dissesse qualquer coisa desse tipo), coisa do pessoal da nova era, que sequestra termos científicos e distorçe idéias pra tentar dar validade a suas ideias às custas do prestígio que a ciência conseguiu.

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    3. Boa parte dos efeitos quânticos realmente não são observados no macro, mas isso não quer dizer que não exista. Sobre o que falei sobre feynman, ele criou a hipótese em que o efeito poderia vir antes da causa, quando estava desenvolvendo a eletrodinâmica quântica, pois caso a tal hipótese não fosse verdadeira a velocidade da luz podia ser superada, o que seria um problema maior para se lidar.

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  2. Interessante questão. Não tenho conhecimentos suficientes para identificar falácias nesse assunto, acho que por isso o livro "Evolução Científica das Espécies" do Amit Goswami me pareceu bem plausível em alguns questionamentos.

    O ponto que me pegou é que realmente parece estatisticamente improvável sair de proteínas e chegar a um ser vivo, mais ainda se considerarmos os seres mais desenvolvidos. É válido considerar que há uma lógica por trás dessas mutações? Por exemplo, saber qual a próxima mutação de uma espécie.

    Não estou querendo encontrar nenhum ser superior, uma regra apenas. Afinal, para teístas poderíamos falar "olha como as Leis de Newton funcionam bem no mundo macroscópico, só pode ser coisa de Deus!"

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    1. Acredito que qualquer acontecimento além de nosso conhecimento pode, muitas vezes, sem encarado como ato divino, como no documentário " Era os deuses astronautas" em que é mostrado uma tribo num ilha no pacifico ( acho que era pacifico mesmo) que havia sido instalada uma base aérea americana na segunda guerra, onde, após o conflito e fechamento da base militar passou a existir um culto as aeronaves, pois eram consideradas divinas ou algo parecido.

      Por isso, sou mais inclinado ao pensamento que não há entidade criadora, mas nós ou outro ser inteligente que criou tudo num dado ponto do futuro mesmo.

      Independente se isso ta certou ou não, acho que o questionamento é o único meio de alcançar a verdade e não o doutrinismo cego.

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    2. Mas para a humanidade ter criado o universo num dado ponto do futuro, ela deveria primeiro vir a existir, e para isso necessitaria, em primeiro lugar, de um lugar adequado para se desenvolver, ou seja, de um universo já existente. Então, ela não poderia ser responsável pela criação daquilo que possibilitou sua própria existência. A mesma coisa se fosse outro ser inteligente.

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  3. O que demonstra que o problema não é falta de inteligência ou de cultura - embora ajude - mas ausência de pensamento crítico e principalmente de honestidade/coragem intelectual.

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