Ceticismo para crianças

Antes do artigo em si, uma nota explicativa: há vinte anos, quando, se não me engano, Itamar Franco governava o Brasil e a inflação era tanta que os preços subiam em progressão geométrica de um dia para o outro, este escriba finalmente obteve seu diploma de bacharel em Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo, e foi procurar emprego. 

O que consegui foi uma vaga genérica de repórter no Jornal de Jundiaí, o mais antigo diário ainda em circulação de minha cidade natal. Minha primeira pauta foi um assalto a mão armada contra um posto de gasolina; a segunda, uma denúncia de esgoto a céu aberto numa favela (o editor me recomendou, paternalmente, que "levasse galochas"). 

Também visitei uma comunidade de idosos que estava prestes a ser despejada por conta da ampliação de uma avenida e um acampamento de sem-terra. Às vezes me pergunto onde teria ido parar se tivesse seguido nessa linha, no "barro" do jornalismo, escrevendo sobre o povo para o povo. Teria sido uma vida mais interessante? Menos? Será que eu prestava para fazer aquilo? Mas, enfim. Com o passar do tempo, acabei em envolvendo na cobertura da política municipal e, não sei exatamente como, fui convidado para colaborar com o suplemento infantil do jornal, chamado Jotinha, fazendo uma coluna sobre ciência.

 Lembro-me de ter escrito textos sobre coisas bem básicas -- número, espaço, tempo -- e aí saí do jornal para tentar virar como escritor e tradutor free-lance, fracassei fragorosamente e, depois de mais algumas idas e vindas, acabei indo parar na internet do Estadão, onde fiquei pelos 14 anos seguintes.

 Bom, toda essa introdução é para explicar que, nesta semana, o Jotinha completou 1000 edições e seu editor, o professor Fernando Bandini, me convidou para escrever a milésima coluna de ciência para crianças. Aceitei, tão honrado quanto nostálgico, mas optei por, em vez de falar sobre o conteúdo das ciências, tentar tratar do método -- algo que, 20 anos atrás, eu teria sido incapaz de fazer. O resultado, compartilho com vocês aqui abaixo:

 Comecei a escrever para o Ciência e Consciência há uns vinte anos. Muitos dos leitores que estão vendo este texto, agora, nem tinham nascido! Talvez nem seus pais se conhecessem. Vinte anos é muito tempo. Durante todo esse tempo, o Ciência e Consciência falou sobre as coisas que os cientistas descobriram, e que continuam descobrindo, a respeito do mundo em que vivemos.

 Eu queria aproveitar este aniversário, no entanto, para falar de uma coisa um pouco diferente: o segredo que leva os cientistas a fazerem suas descobertas. Claro, cada ciência tem seu jeito próprio. O arqueólogo (que é o cientista que estuda povos e civilizações antigas) visita ruínas e faz escavações. Os biólogos (que estudam os seres vivos) vão para as matas, as florestas, o fundo do mar, e também têm seus laboratórios. Os matemáticos pensam muito, prestando sempre muita atenção no que fazem. Mas todos os cientistas, não importa a especialidade, têm um método, um segredo em comum: eles duvidam.

 É porque o arqueólogo duvida das histórias que ouviu sobre como os povos do passado viviam que ele vai até as ruínas, vai escavar as ruas das antigas cidades: para ver se o que lhe disseram era mesmo verdade e assim, quem sabe, descobrir coisas novas. É porque os cientistas duvidam que existem os laboratórios, que são lugares onde se fazem experiências.

Uma experiência é algo que se faz para ver o que acontece: um jeito de resolver uma dúvida. Pessoas que não têm dúvidas, que não duvidam, não precisam experimentar. É por isso que nós experimentamos roupas ou comidas: porque temos dúvida de se camisa vai servir, ou de se o doce é mesmo bom.

 Agora, muita gente acha que duvidar é feio, uma coisa de falta de educação. Que é preciso aceitar a palavra dos outros, senão estaremos ofendendo as pessoas – chamando-as de mentirosas ou, caso sejam pessoas adultas, faltando com o respeito. Mas é que existem maneiras diferentes de dizer que se duvida de uma coisa. Fazer cara feia, dar risadinha, ser teimoso não vão ajudar você a fazer amigos ou a ganhar a paciência dos adultos.

O jeito de duvidar dos cientistas, porém, é diferente: é respeitoso, interessado, ativo. Ser respeitoso é apenas isso: não fazer careta, não dar risadinha, não tentar parecer melhor que os outros. Ser interessado é não ficar apenas dizendo “eu duvido”, mas fazer perguntas, pedir detalhes, explicações.

 Gente que tem coisas legais a dizer costuma até gostar desse tipo de dúvida, já que ele mostra que você está ligado e prestando atenção. E nem todo mundo que passa uma informação falsa está mentindo: muitas vezes a pessoa apenas está enganada, e suas perguntas podem até ajudá-la a perceber isso. Todo mundo erra de vez em quando, e um pouco de dúvida pode ajudar a pegar o erro.

 Já ser ativo é fazer o que o arqueólogo, o biólogo, o astronauta fazem: ir atrás das provas – o que os cientistas chamam de “evidências” – a favor ou contra aquilo que você pensa. É essa busca que leva aos laboratórios, ao espaço, ao fundo do mar. É onde a parte divertida da ciência está.

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