Liberais e conservadores
Gosto de me considerar um liberal. Se fosse escolher meu slogan político favorito, ele seria: "um socialista é alguém que ama tanto os pobres que está disposto a dar tudo que os outros têm para ajudá-los". Meu liberalismo me faz torcer o nariz para o crony capitalism -- capitalismo de compadres -- brasileiro, onde para as empresas amigas do rei vale tudo e, para as outras, é a lei kafkiana de um lado e o mercado distorcido, do outro. Por falar em leis, também acho que, quanto menos delas houver, melhor.
Mas meu liberalismo talvez seja meio sui generis, ao menos em relação que vejo por aí na internet: por exemplo, acho que o governo deve, mesmo, oferecer saúde pública e programas de transferência de renda. O ideal liberal é o da sociedade que permite que o indivíduo tome o maior número possível de decisões sem qualquer tipo de coação, e doença e fome são formas de coação, geralmente mais presentes, até, que a coação das armas.
Para quem diz que essas coisas estimulam "vagabundagem", respondo que realmente não acredito que uma pessoa normal precise ver os filhos à beira da morte por febre ou inanição para resolver trabalhar. Ou Steve Jobs parou de ter boas ideias depois de ficar milionário?
A ameaça contida na frase, atribuída, se não me engano, a Lyndon Johnson, de que "um governo forte o bastante para lhe dar tudo de que você precisa também é forte o bastante para tirar tudo o que você tem" é em si bem plausível, assim como é plausível a relação direta entre responsabilidade e poder: se o Estado assume mais obrigações, ele precisa de mais poder para executá-las e, quando menos esperamos, eis o Leviatã tirânico lambendo as presas afiadas, bem diante de nossos olhos.
Esses perigos são reais e devem ser sempre levados em conta ao se contemplar as ações e missões do governo, mas deixar-se paralisar por eles ignora o jogo de freios, contrapesos e legitimidade das democracias, como também ignora tiranias outras que existem fora do Estado.
E aqui é o ponto em que me vejo à beira do desespero, quando assisto à aliança entre liberalismo e conservadorismo que se vai forjando no Brasil -- ao menos, de acordo com o que é mais aparente nas redes sociais. Isso porque, a despeito da breve convergência de agendas, especificamente na área fiscal, isso não faz o menor sentido. Ou, só faz sentido na velha lógica biliar de inimigo-do-inimigo.
Há uma tentativa em curso de se definir "conservadorismo" como "respeito pelo passado" ou, de forma mais específica, como a ideia de que tradições, pensamentos e estruturas que nos são legados pelas gerações anteriores existem por uma razão, e que seria imprudente descartá-los sem exame.
Mas isso não é "conservadorismo", é apenas bom senso, o que levanta, desde já, sinais de alerta. Uma doutrina que tenta se redefinir usando termos de que ninguém em sã consciência poderia discordar está, por tabela, tentando definir seus opositores como loucos ou idiotas. É retórica eficaz, mas desonesta.
A melhor definição de conservadorismo é a do cientista político Corey Robin, autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Sarah Palin: "a experiência vivida de ter poder, de vê-lo ameaçado, e de tentar reconquistá-lo".
Mencionei, alguns parágrafos atrás, as "tiranias outras que existem fora do Estado". É exatamente nelas que se encontra o poder que o conservador teme perder: o poder do homem sobre a mulher, do pai sobre os filhos, do patrão sobre o empregado, do rico sobre o pobre, do clérigo sobre o leigo, do branco sobre o negro, do "normal" sobre o "desviante".
Conservadores insistem que o cidadão deve buscar refúgio da tirania do Estado nos braços da religião e da família -- mas a experiência histórica nas democracias é exatamente o oposto disso: tem sido nos agentes dos Estados democráticos que as vítimas de opressão pela família e pela religião encontram algum tipo de apoio, fugindo da violência doméstica, do abuso sexual, da ignorância imposta como dogma.
Liberais verdadeiros não deveram nunca se esquecer disso. John Stuart Mill, talvez o maior dos filósofos liberais, escreveu contra a tirania do Estado, mas também em favor do feminismo, pela abolição da escravatura e até especulou a respeito dos limites que a natureza poderia impor ao crescimento econômico.
O espírito liberal é um de oposição a todas as tiranias. Não deveríamos permitir que o medo de uma, ainda hipotética, nos jogue nos braços dos defensores de tantas outras, reais, que ainda grassam ao nosso redor.
Mas meu liberalismo talvez seja meio sui generis, ao menos em relação que vejo por aí na internet: por exemplo, acho que o governo deve, mesmo, oferecer saúde pública e programas de transferência de renda. O ideal liberal é o da sociedade que permite que o indivíduo tome o maior número possível de decisões sem qualquer tipo de coação, e doença e fome são formas de coação, geralmente mais presentes, até, que a coação das armas.
Para quem diz que essas coisas estimulam "vagabundagem", respondo que realmente não acredito que uma pessoa normal precise ver os filhos à beira da morte por febre ou inanição para resolver trabalhar. Ou Steve Jobs parou de ter boas ideias depois de ficar milionário?
A ameaça contida na frase, atribuída, se não me engano, a Lyndon Johnson, de que "um governo forte o bastante para lhe dar tudo de que você precisa também é forte o bastante para tirar tudo o que você tem" é em si bem plausível, assim como é plausível a relação direta entre responsabilidade e poder: se o Estado assume mais obrigações, ele precisa de mais poder para executá-las e, quando menos esperamos, eis o Leviatã tirânico lambendo as presas afiadas, bem diante de nossos olhos.
Esses perigos são reais e devem ser sempre levados em conta ao se contemplar as ações e missões do governo, mas deixar-se paralisar por eles ignora o jogo de freios, contrapesos e legitimidade das democracias, como também ignora tiranias outras que existem fora do Estado.
E aqui é o ponto em que me vejo à beira do desespero, quando assisto à aliança entre liberalismo e conservadorismo que se vai forjando no Brasil -- ao menos, de acordo com o que é mais aparente nas redes sociais. Isso porque, a despeito da breve convergência de agendas, especificamente na área fiscal, isso não faz o menor sentido. Ou, só faz sentido na velha lógica biliar de inimigo-do-inimigo.
Há uma tentativa em curso de se definir "conservadorismo" como "respeito pelo passado" ou, de forma mais específica, como a ideia de que tradições, pensamentos e estruturas que nos são legados pelas gerações anteriores existem por uma razão, e que seria imprudente descartá-los sem exame.
Mas isso não é "conservadorismo", é apenas bom senso, o que levanta, desde já, sinais de alerta. Uma doutrina que tenta se redefinir usando termos de que ninguém em sã consciência poderia discordar está, por tabela, tentando definir seus opositores como loucos ou idiotas. É retórica eficaz, mas desonesta.
A melhor definição de conservadorismo é a do cientista político Corey Robin, autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Sarah Palin: "a experiência vivida de ter poder, de vê-lo ameaçado, e de tentar reconquistá-lo".
Mencionei, alguns parágrafos atrás, as "tiranias outras que existem fora do Estado". É exatamente nelas que se encontra o poder que o conservador teme perder: o poder do homem sobre a mulher, do pai sobre os filhos, do patrão sobre o empregado, do rico sobre o pobre, do clérigo sobre o leigo, do branco sobre o negro, do "normal" sobre o "desviante".
Conservadores insistem que o cidadão deve buscar refúgio da tirania do Estado nos braços da religião e da família -- mas a experiência histórica nas democracias é exatamente o oposto disso: tem sido nos agentes dos Estados democráticos que as vítimas de opressão pela família e pela religião encontram algum tipo de apoio, fugindo da violência doméstica, do abuso sexual, da ignorância imposta como dogma.
Liberais verdadeiros não deveram nunca se esquecer disso. John Stuart Mill, talvez o maior dos filósofos liberais, escreveu contra a tirania do Estado, mas também em favor do feminismo, pela abolição da escravatura e até especulou a respeito dos limites que a natureza poderia impor ao crescimento econômico.
O espírito liberal é um de oposição a todas as tiranias. Não deveríamos permitir que o medo de uma, ainda hipotética, nos jogue nos braços dos defensores de tantas outras, reais, que ainda grassam ao nosso redor.
"...meu slogan político favorito, ele seria: 'um socialista é alguém que ama tanto os pobres que está disposto a dar tudo que os outros têm para ajudá-los'."
ResponderExcluirBem, considerando que capital é um produto social, não seria ao todo injusto, certo? Claro que sua anedota carrega um pá de senso comum, pois tanto marxistas e anarquistas são(eram) contra o Estado. Inclusive, Marx, depois da experiência da Comuna de Paris passou a repensar na utilização democrática do Estado para o processo de transição - posição, então, mantida por ele desde o Manifesto.
"O espírito liberal é um de oposição a todas as tiranias."
E qual tirania poderia ser maior do que a expropriação da força de trabalho alheio em prol do lucro privado?; Relações sociais submetidas a transações financeiras?
As desigualdades sócio-econômicas em países cujos governos se apossaram da doutrina liberal foram alarmantes. (curiosamente, políticas neoliberais parecem estar indissociáveis das políticas de austeridade. Ver Irlanda, Grécia, Espanha...)
Reagan, Tatcher, Pinochet...
Os "liberais tiranos". Que designação melhor poderiam receber? rs
"E qual tirania poderia ser maior do que a expropriação da força de trabalho alheio em prol do lucro privado?; Relações sociais submetidas a transações financeiras?"
ExcluirQue tal, expropriação da força de trabalho em prol dos privilégios da burocracia cleptocrática? Relações sociais submetidas à patrulha partidária?
E se é para citar as "bestas-feras" de um lado e de outro, Reagan, Tatcher e Pinochet fizeram muito menos mal que Mao, Stalin e Kim. Sem falar que citar Pinochet como "liberal", só porque ele adotou as doutrinas (extremistas) da Escola de Chicago é como chamar Hitler de socialista, porque ele centralizou o controle da economia.
"E se é para citar as "bestas-feras" de um lado e de outro, Reagan, Tatcher e Pinochet fizeram muito menos mal que Mao, Stalin e Kim."
ResponderExcluirPrefiro não ter que escolher entre nenhum dos males.
"Sem falar que citar Pinochet como "liberal", só porque ele adotou as doutrinas (extremistas) da Escola de Chicago é como chamar Hitler de socialista, porque ele centralizou o controle da economia."
Faz sentido sua analogia, mas nem tanto. A Alemanha Nazi foi um dos primeiros países a adotar o keynesianismo. E o seu crescimento inicial, com taxas cadas vez menores de desemprego, está relacionado com as medidas de bem-estar social. Mais tarde porém, assumiram uma economia de comando; obviamente, preparando-se para a guerra. O pequeno mercado ficou sob forte controle. Mas lembramos, a apropriação particular dos meios de produção nunca foi abolida. E os grandes industriais - também cafifados com o Partido Nazista - continuaram a ter grande liberdade econômica e de investimento. Resumindo, a Alemanha de Hitler nunca foi socialista em nenhum aspecto.
Se não prefere o Pinochet, pode ficar com toda a crise de 2008, acentuada por políticas neoliberais e somente atenuada com a intervenção do Estado na economia.
Feliz ou infelizmente, temos de fazer escolhas - incluída a de ficar mais ou menos "em cima do muro". Costumo reclamar que o pessoal de esquerda ou "anti-liberal" frequentemente é mais divertido que o de "direita" (liberal, neoliberal, conservador) ou, mais precisamente, do que o pessoal de direita que se apresenta como tal, porque... "de direita", a imensa maioria das pessoas é, mesmo entre as que se dizem "de esquerda". Mesmo assim, tendo a escolher, em questões políticas, ficar ao lado de pessoas de "direita".
ResponderExcluirNisso, alguns fenômenos de percepção confundem as coisas. A maioria dos esquerdistas é social-democrata e apenas repete alguns exageros e utopismos anarquistas. De modo similar, a maioria dos direitistas são social-democratas e apenas repete alguns exageros conservadores ou anarcocapitalistas. Mas, claro, há anarquistas, anarcocapitalistas e os anarquistas em dois estágios, isso é, os marxistas... que primeiro agigantam um estado terrível e feito para a guerra e opressão... contando que, depois, um dia... vencida a guerra e morta a geração dos traumatizados da guerra... não se necessitará de nenhum estado.
Eu me considero um liberal conservador, algo na linha de Burke. Sou capaz até de elogiar uma revolução (como a americana) mas, fazendo críticas a outra (como a francesa), sou considerado reacionário. Tudo bem, nesses termos, sou reacionário. Aceito que mudanças são necessárias e não raro, bem vindas; mas confiar apenas na razão para reformar a sociedade preferencialmente "do zero" é deveras imprudente e, entre o não tão bom e o provavelmente pior, prefiro o não tão bom.