Depois do papa, ou a ressaca

Bom, tem gente me cobrando uma "avaliação" da visita do apóstolo Chico ao Brasil, então vamos lá. A primeira coisa de que gostaria de tratar é da tal manifestação em que algumas pessoas quebraram uma imagem de santo, usaram um crucifixo como vibrador ou algo assim. Não estava prestando atenção quando aconteceu, então só peguei a espuma e o atrito da discussão que se seguiu, mas o espírito da coisa parece ser o de que alguns objetos tidos como sagrados pelos católicos foram profanados de um modo muito público e com muito mau gosto.

As discussões a respeito, ao menos nas redes sociais, parecem ter misturado três componentes que, a meu ver, deveriam ser tratadas de modo separado: a admissibilidade do que foi feito; a legalidade; e a conveniência.

"Admissibilidade" é uma questão de ética, ou de etiqueta. Não é a mesma coisa que legalidade, porque há coisas admissíveis que são ilegais (por exemplo, uma mulher dirigir automóvel na Arábia Saudita), e há coisas inadmissíveis que são, ou já foram, legais (ter escravos). Então: sacanear os símbolos da religião dos outros é admissível? Bom, quem segue o blog há mais tempo sabe que considero a blasfêmia um direito humano fundamental. Já escrevi mais longamente sobre o assunto aqui, aqui e aqui. E também aqui.

O aspecto da "legalidade" é um em que tenho muito menos competência para opinar. O Brasil tem umas leis bem cretinas de proteção ao "sentimento religioso", então, sei lá, de repente foi ilegal. Mas, mesmo que tenha sido, é importante ter em mente o grau da ilegalidade: comparações com, por exemplo, a depredação de locais de culto afro-brasileiro ou com a pichação de igrejas ou sinagogas são mal informadas ou desonestas. Comprar uma imagem de Nossa Senhora e quebrá-la na praça é bem diferente de invadir uma igreja e quebrar a imagem no altar, assim como estourar o próprio carro no muro da própria casa é um bicho totalmente diferente de roubar o carro do vizinho e estourá-lo no muro da casa dele.

A "conveniência" talvez seja o aspecto mais aberto a discussão, ainda mais porque depende de uma apreensão dos objetivos dos manifestantes -- uma coisa é conveniente (ou inconveniente) apenas em relação a um determinado fim. Então, a profanação pode ter sido conveniente para algumas pessoas e inconveniente para outras, dependendo dos objetivos que têm em mente. Pode ter sido muito útil, por exemplo, para épater la bourgeoisie. Ou desopilar o fígado. Ou manifestar uma opinião.

Mas também pode ter sido útil para outra coisa, muito importante, que é a diminuição da deferência automática e instintiva que as pessoas têm em relação à religião e símbolos correlatos. Nas palavras do jurista americano Steven G. Gey, "o debate público de ideias religiosas é sutilmente enviesado a favor da religião, por meio da deferência obrigatória imposta, pela lei, ao descrente". Não só pela lei: pelos costumes, pelo ambiente cultural, pela inércia mental.

Quebras dessa superestrutura muitas vezes representam choques úteis. Ainda mais porque essa deferência é esperada pelos fiéis. Eles contam com ela, e não se furtam a usá-la para fazer avançar suas agendas na área política, social, etc. Frustrar expectativas desse tipo é importante.

E importante também é evitar confundir conveniência com admissibilidade, um erro muito comum e fonte de vários casos de censura "bem intencionada".

E, falando em boas intenções, vou romper aqui com o coro de elogios ao estilo boa-praça do papa Francisco e dizer que eu preferia, mas muito mais, o sisudo Bento XVI, ao menos no que diz respeito às questões de moral e costumes (sobre os problemas, mais graves, da pedofilia e dos escândalos financeiros, ainda há que se ver).

Por quê? Porque a mensagem de ambos é essencialmente a mesma e a versão de Francisco, pois edulcorada, é infinitamente mais cruel. A Igreja de Francisco "abre os braços" e "acolhe" os gays, desde que eles "busquem Deus". Omite-se que a busca consiste em concordar em viver como um animal castrado.

Além de produzir culpa -- os braços abertos, afinal, estão lá. Se você não aceita o abraço oferecido, é por despeito ou perversidade -- o discurso acaba se parecendo muito com os nomes de práticas de tortura chinesa, descrições poéticas de grandes suplícios. Como "A Bela Dama Oferece Seus Frutos", que consistia em empilhar pesos cada vez maiores sobre um suporte preso no pescoço da vítima ajoelhada.

Comentários

  1. Não acho que seja o caso (já) o caso de condenar o que você chama de versão edulcorada de Francisco. Eu não acho que vai passar do discurso bonitinho, mas estou disposto a dar o benefício da dúvida a ele, além de reconhecer que algum passo na direção certa, ainda que pequeno, é melhor que o retrocesso.

    Como disse a um amigo teólogo anteontem, o momento não é de aplaudir, e sim de perguntar: "Muito bem. E o que mais, sr Papa?"

    -Daniel Bezerra

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  2. Aquela velha frase dos cristãos de "odiar o pecado e amar o pecador" é a maior perversidade que as religiões foram capazes de inventar... Francisco, como bom chefe de igreja, repetiu o mesmo discurso... nem acho que houve tanto edulcorante assim...

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  3. Mais uma vez, perfeito, Carlos, perfeito em todos os detalhes.:-)

    Um abraço.

    Homero

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  4. Sem querer vc nesse texto foi exatamente igual ao Papa Francisco: ou seja, soube escolher as palavras para concordar, achar, válido, correto e até necessario uns manifestantes enfiar um crucifixo no anus, rasgando os restantes das pregas para protestar.

    Vc soube muito bem escrever um texto, escolhendo os argumentos a dedo para achar que se masturbar com crucifixos n em praça pública é uma forma de protesto muito válida.

    Parabéns!

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