Rogue Male

Capa e lombada da edição da Folio Society
Fazia tempo que estava querendo ler Rogue Male, de Geoffrey Household: a primeira vez que ouvi falar do livro foi numa biografia de Ian Fleming, onde se dizia que Household tinha sido um autor muito admirado pelo criador de James Bond; a segunda foi em SOE, de M.R. Foot, uma história da Executiva de Operações Especiais, órgão clandestino criado pelo governo britânico para estimular a subversão e a sabotagem na Europa ocupada pela Alemanha, durante a 2ª Guerra. Nesse livro, não só Rogue Male é elogiado como "um dos melhores thrillers já escritos", como somos informados de que Household havia tomado parte num projeto para sabotar os campos de petróleo da Romênia, caso os nazistas se apossassem deles.

Com essas indicações, ficou óbvio que eu tinha de ler o livro. Há alguns dias, finalmente consegui pôr as mãos numa edição fantástica da Folio Society e, obrigando-me a abrir uma pausa nas leituras de não-ficção que andam monopolizando meu soi-disant tempo livre, passei o sábado mergulhado no livro, publicado originalmente em 1939. Dizer que um livro é "devorado" já virou clichê, mas foi o que aconteceu: sentei-me com o volume de 142 páginas logo depois do almoço e só me levantei da poltrona depois de terminar a última linha. Fantástico.

Narrado em primeira pessoa por um protagonista sem nome, Rogue Male conta a história da fuga de um homem acusado de tentar matar um "grande homem", líder político de uma potência europeia -- não fica claro quem seria sua suposta vítima, mas a geografia do livro abre apenas duas possibilidades: Hitler ou Stálin. O título é uma expressão de caça, que no contexto pode ser traduzida como "macho desgarrado", numa referência ao animal que, perseguido por caçadores, se separa do bando ou matilha. "O Todo-Poderoso protege o macho desgarrado", diz o narrador, em duas ocasiões.

Visto pelas lentes do século 21, o narrador é, a um só tempo, uma figura fascinante e repugnante. Falando da segunda característica  primeiro: ele é um aristocrata que caça por esporte; machista; acredita que o bullying sistemático a que os jovens britânicos eram submetidos nas chamadas "escolas públicas" do país era importante para a formação do caráter; acredita na existência de uma certa "classe X" de pessoas que merecem respeito incondicional, que são líderes naturais, que deveriam estar acima das leis comezinhas que servem para o resto dos mortais.

E é fascinante porque, desapegado de suas terras e título, decide ceder sua velha propriedade feudal a uma cooperativa de arrendatários; num diálogo com dos agentes -- fascistas? comunistas? -- que o perseguem, acusado de não ter respeito pela nação ou pelo Estado, ele aceita a acusação e responde: "Mas respeito os direitos dos indivíduos"; e pela psicologia complexa de sua motivação (afinal, ele realmente tentou matar o "grande homem", ou não, e por quê?), algo que faz com que o autor da introdução da edição da Folio, John Banville, compare Rogue Male à obra de Samuel Beckett.

Mas, claro, Rogue Male é um thriller, e todos os ingredientes estão lá, do suspense ao mistério -- tanto físico quanto psicológico -- e às escapadas tão intricadas quanto inverossímeis. O romance de Household trança dois fios que depois viriam a ser desenvolvidos de modo separado na literatura de ação e espionagem subsequente, tendo ao mesmo tempo a densidade psicológica de um bom Le Carré e a tensão física de um Fleming. O que o narrador sem nome de Household sofre nas mãos -- da SS? da NKVD? -- não fica nada a dever aos momentos mais excruciantes da carreira de James Bond.

Na comparação com os livros de suspense atuais, Rogue Male surpreende tanto por trazer juntas essas duas tradições, que depois iriam se desenvolver em campos quase antagônicos, quanto por ser tão curto: em 140 páginas, empacota um efeito que o leitor de hoje se acostumou a esperar de trilogias inteiras.

Escrito por um autor contemporâneo nosso, Rogue Male provavelmente conteria seções inteiras sobre os pensamentos e a vida íntima de Saul, o amigo banqueiro que auxilia o narrador em sua fuga, ou do Major, o agente continental que empreende a caçada humana, ou sobre a vida doméstica do pescador polonês que socorre o narrador logo no início da narrativa. E também ficaríamos sabendo qual o destino final do assecla suíço do Major, que sai abruptamente do livro.

Tudo isso talvez fosse interessante de ler e de saber, mas seria apenas mais voyerismo, não necessariamente  melhor literatura. Certa vez li uma citação, atribuída a Machado de Assis, que diz algo como "detesto o autor que me conta tudo". Rogue Male não conta tudo, mas sabe contar o suficiente. O que é quase uma arte perdida.

Comentários

  1. E é o trabalho favorito de Peter O'Toole/
    http://en.wikipedia.org/wiki/Rogue_Male_(1976_film)

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