A "outra" divulgação científica
Semana passada, estive no campus da Unesp de São José do Rio Preto, participando de uma mesa redonda sobre divilgação e popularização da ciência, ao lado de Samuel Antenor, da Agência Fapesp, e do biólogo Renan Garcia, que vem desenvolvendo um projeto de conscientização sobre a anemia falciforme. A mesa fez parte da 30ª Semana de Biologia da Unesp de Rio Preto, organizada por estudantes -- e, mais uma vez agradeço o convite!
Como costumo fazer nesses eventos, levei comigo um texto-base sobre o que queria dizer e, como também costumo fazer, acabei fazendo uma breve apresentação que, se seguiu o texto-base em suas linhas gerais, não chegou a dar conta dele (mesmo porque o público não é obrigado a aturar minha voz maviosa durante a leitura de um ensaio de três páginas). Então, publico, abaixo, a íntegra do que havia preparado:
Como costumo fazer nesses eventos, levei comigo um texto-base sobre o que queria dizer e, como também costumo fazer, acabei fazendo uma breve apresentação que, se seguiu o texto-base em suas linhas gerais, não chegou a dar conta dele (mesmo porque o público não é obrigado a aturar minha voz maviosa durante a leitura de um ensaio de três páginas). Então, publico, abaixo, a íntegra do que havia preparado:
Creio que não é mais necessário defender de modo muito
enfático a necessidade de divulgação do conhecimento científico. Vivemos numa
civilização construída sobre esse conhecimento. Nenhuma economia pode esperar
sobreviver, nenhum povo pode prosperar e manter-se autônomo se não tiver
cidadãos educados nas ciências, capazes de pesquisar, criar, aplicar –
engenheiros, médicos, físicos, biólogos, matemáticos.
Também é ponto pacífico que o conhecimento científico não
pode ficar restrito aos profissionais que lidam diretamente com ele: da
importância de se lavar as mãos antes das refeições aos cuidados necessários
com o meio ambiente, da importância das campanhas de vacinação à necessidade de
não se abusar do uso de antibióticos, existe muito conhecimento científico que
precisa chegar à população em geral, seja por meio da educação formal, seja por
outras vias, como a imprensa tradicional, a internet, as redes sociais.
Divulgação e popularização da ciência também são um direito
da população e um dever do cientista: é o dinheiros dos impostos que sustenta,
afinal, boa parte da pesquisa científica – portanto, nada mais justo que os
cientistas que gastam esse dinheiro se dediquem, na medida do possível, a
explicar àqueles que não são seus pares o que fazem e por que fazem.
A divulgação científica também tem o que eu chamaria de uma
dimensão estética, poética – diria até “espiritual”, mas evito a palavra para
não criar maus-entendidos. Da mesma forma que o cidadão comum tem direito aos
produtos mais palpáveis da ciência, ele também tem direito ao maravilhamento,
ao espanto e ao encanto que a ciência produz: saber que o Universo tem mais de
13 bilhões de anos e está em expansão, que a Terra é apenas um planeta entre
milhares de outros, que a luz das estrelas que vemos partiu há milhares de anos
de astros que talvez não existam mais.
Os quatro motivadores da divulgação científica que mencionei
até agora – educação para o desenvolvimento, educação para a saúde e o
ambiente, prestação de contas à sociedade, encantamento e inspiração – são
amplamente reconhecidos, contam com profissionais dedicados a eles, seja na
universidade, nas agências de fomento, na mídia em geral. Não digo que esse
trabalho seja sempre bem feito, ou que as energias dedicadas a ele, hoje, no
Brasil, sejam suficientes – na mídia em geral, eu diria que o investimento
encontra-se em refluxo e atinge níveis perigosamente baixos – mas, ao menos, a
necessidade é reconhecida e as insuficiências, quando não sanadas, são, pelo
menos, lamentadas.
Mas todas essas modalidades tratam da divulgação dos
resultados da ciência. Do conhecimento científico como um dado a ser
apresentado.
O problema é que hoje em dia, isso não basta mais. A
quantidade de questões que os cidadãos das democracias contemporâneas são
chamados a decidir, e sobre as quais a ciência tem algo a dizer – do
aquecimento global à natureza da homossexualidade, passando até mesmo pelos
efeitos e causas da desigualdade econômica, questão à qual a revista Science
dedicou toda uma seção em sua edição mais recente – é tamanha que, para usar um velho
clichê, não basta mais apenas dar o peixe. É preciso ensinar a pescar.
Acho que foi Carl Sagan quem disse que a ciência, mais do
que um conjunto de informações e conhecimentos, é um modo de pensar, uma forma
de enxergar o mundo. Uma disciplina da mente. Sem entrar na sempre delicada
questão de o que é o “método científico”, ou se é possível falar em um “método”
único, creio ser impossível negar que há algumas características, por genéricas
que sejam, que valem da história à física de partículas: o respeito pela
evidência empírica, pelo encadeamento lógico de ideias, a relativização do
argumento de autoridade, o estímulo à crítica vigorosa, à dúvida sistemática, a
valorização da honestidade intelectual – por exemplo, no princípio de que todos
os dados devem ser levados em consideração, não apenas os que apoiam esta ou
aquela hipótese.
Essa é a outra ciência – a ciência como postura – que
precisa ser mais divulgada, se quisermos um futuro democrático saudável, livre
das ameaças da tecnocracia, de um lado, e da demagogia, do outro.
Neste ano, temos eleições presidenciais: da análise correta
das pesquisas de intenção de voto à fria autópsia dos dados e discursos dos
candidatos, são as ferramentas da ciência, mais que o conhecimento científico
propriamente dito, que mais podem ajudar o cidadão. Mas nem precisaríamos do
drama eleitoral para justificar essa afirmação.
O brasileiro – e não só ele, mas o homem ou mulher ocidental
– é bombardeado diariamente por mensagens, que vão da propaganda de suplementos
de ervas para emagrecer a curas quânticas para a insônia, cuja veracidade
poucos teriam a competência de avaliar de modo imediato. O metabolismo da
gordura ou a natureza das interações subatômicas não são de conhecimento geral,
e é improvável que um dia venham a ser. Mas se uma pessoa souber como a ciência
funciona – e onde procurar a informação correta – isso poderá ser o bastante
para salvá-la de perder dinheiro, intoxicar-se ou coisa pior.
A divulgação do conteúdo das ciências é importante, e
precisa continuar a ser feito de modo cada vez mais intenso. Mas eu queria
chamar a atenção de todos para essa outra divulgação, tantas vezes ignorada e
negligenciada, e que é tão ou mais crucial: a divulgação de o que a ciência é,
e de seu modo de usar.
Isso se chama educação básica, um dos deveres mais negligenciados em qualquer sociedade. As tremendas repercussões políticas que uma população cientificamente alfabetizada causaria são a principal razão para que educação seja tratada de forma tão leviana.
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