"Milagre", carisma e política
Quando pesquisei o capítulo do meu Livro dos Milagres que trata das aparições marianas -- fenômenos em que se diz que a mãe de Jesus surge diante de testemunhas, trazendo mensagens -- dei uma busca em bases de dados internacionais, como o catálogo da Universidade de Dayton, e consultei livros como o trabalho da antropóloga Sandra L. Zimdars-Swartz, Encoutering Mary, para ver se haveria algo a mencionar no Brasil, mas não encontrei nada de especial relevância.
O catálogo do Instituto Internacional de Pesquisas Marianas de Dayton listava, até 2014, sete ocorrências no país, seis ainda em aberto -- isto é, sem decisão de um bispo sobre se a aparição é ou não digna de crédito -- e uma com decisão negativa. Pesquisas subsequentes mostraram que nenhuma delas teve impacto na consciência popular comparável aos casos de que tratei no livro (Guadalupe, Lourdes, Fátima). O fenômeno de devoção mariana mais relevante para a história do Brasil, até agora, foi a descoberta da imagem original de Aparecida, por pescadores, no século XVIII, mas só metaforicamente esse evento pode ser considerado um "milagre".
Esse cenário pode estar prestes a mudar, porém. Lançado há poucos meses, o livro Eu Sou a Graça, do monge beneditino Dom Rafael Maria Francisco da Silva, busca chamar atenção para uma série obscura de aparições de Maria em Pernambuco, entre os anos de 1936 e 1937. Ela é tão obscura, de fato, que sequer é mencionada no catálogo de Dayton, que se pretende exaustivo e reúne quase 400 ocorrências ao longo dos últimos 100 anos.
Mas resgatar e atribuir novos significados a aparições marianas perdidas do passado não é incomum, ainda mais em tempos disputa ideológica e de tensão política: a narrativa em torno dos eventos de Fátima, por exemplo, só veio a tomar a forma presente, com ênfase nos "três segredos", décadas depois das aparições de 1917, quando a publicação da Terceira Memória da vidente Lúcia dos Santos, em 1941, permitiu uma reinterpretação das aparições como um alerta anticomunista. "Autoridades católico-romanas a Europa encontraram, na Virgem de Fátima, uma fonte importante para conter a disseminação do comunismo", escreve Zimdars-Swartz.
A história do fenômeno pernambucano, tal como narrada em Eu Sou a Graça, parece saída do roteiro de algum filme perdido do Cinema Novo: as videntes são duas meninas adolescentes, uma branca e uma negra; o padre que as defende dos céticos e da hierarquia eclesiástica truculenta. José Kehrle, é um imigrante alemão e o confessor favorito de Lampião; a mãe de uma das meninas dá à luz e depois perde o filho recém-nascido, ainda de poucos dias, durante o pânico e o caos causados por um assalto de cangaceiros à região em que vivia a família. De fato, a primeira aparição ocorre quando uma das meninas questiona, após a morte trágica do bebê, quem poderá protegê-las de Lampião, pergunta retórica prontamente respondida pelo surgimento da imagem luminosa de Maria.
Exceto pelos detalhes de cor local, no entanto, as ocorrências no Sítio Guarda, em Pernambuco, em tudo seguem a estrutura apontada por Zimdars-Swartz para o "novo tipo" de aparição mariana inaugurado em La Salette, na França, nos anos 1840, que depois se consolidaria em Lourdes e Fátima e que seria seguido, como uma espécie de gabarito, por inúmeros outros eventos ao longo da segunda metade do século XIX e por todo o século XX.
Nesse gabarito, a figura de Maria manifesta-se como uma aparição -- isto é, como um objeto concreto, integrado ao ambiente -- e não como uma visão, algo que surge num estado alterado de consciência, num êxtase místico ou vem num sonho; os principais videntes são crianças ou adolescentes, preferencialmente do sexo feminino (e não padres, monges, santos); a aparição se dá num espaço aberto, não numa cela, quarto, dentro de uma igreja, num claustro; o fenômeno é serial (as aparições se repetem ao longo de vários dias); e é público, no sentido de que, à medida que os episódios se repetem, mais e mais pessoas se juntam em torno dos videntes e, por meio deles, tomam conhecimento das mensagens da santa.
Aqui, aliás, há um detalhe importante, que às vezes é minimizado: em todos os relatos-padrão de aparições marianas, de La Salette a Fátima (e em Pernambuco, também), só quem vê e ouve a figura sobrenatural são os videntes eleitos -- geralmente crianças e, quase sempre, liderados por alguém do sexo feminino. As multidões ao redor apenas olham para o vazio e esperam que os escolhidos narrem o que a imagem faz e reportem o que diz. Sob esse um ponto de vista, acreditar numa aparição equivale a acreditar no que uma criança relata a respeito dos gestos e palavras de uma amiga imaginária.
Às vezes, alguma evidência auxiliar é citada, por exemplo curas ou profecias, mas quase nunca são tão sólidas quanto os apologistas querem fazer crer. As mais impressionantes das profecias de Fátima -- por exemplo, a de que a Rússia viria a ser uma ameaça à paz mundial -- embora supostamente tenham sido feitas em 1917, só foram publicadas décadas depois, quando os eventos "previstos" já tinham se consumado.
No caso do Sítio Guarda, em Eu Sou a Graça são apresentadas transcrições de conversas em que as meninas videntes reproduzem, em português, as respostas dadas pela aparição a questões formuladas, por padres, em latim, alemão e italiano. O autor parece convencido de que essas respostas, consideradas por ele geralmente corretas, permitem excluir, por completo, a possibilidade de fraude.
Há várias coisas a ponderar aí: a primeira é que "verdade/fraude" representa uma falsa dicotomia. As aparições podem ao mesmo tempo não serem "verdadeiras" (isto é, não serem de fato comunicações factuais do fantasma de uma jovem judia de 2000 anos que teve um filho chamado Jesus) e também não serem "fraudes" (falsidades deliberadas). Calvin, afinal, não está exatamente mentindo quando descreve o comportamento de Haroldo para os pais.
A segunda é que há bastante latitude para questionar o tal caráter "correto" das respostas. Além de algumas delas serem objetivamente erradas, há vários momentos em que a aparição simplesmente parece distribuir "sins", "nãos", silêncios enigmáticos e gestos ambíguos ao acaso, o que requer alguma caridade interpretativa (e um certo contorcionismo teológico) para que se possa considerá-las "corretas".
Não custa nada lembrar que as pessoas que consultam cartomantes e astrólogos, por exemplo, consistentemente declaram ter recebido muito mais informação objetiva e precisa do que o "sensitivo" forneceu de verdade. A mente do ouvinte, de modo muitas vezes inconsciente, preenche lacunas, atribui significados, condensa tergiversações e, o que é crucial, reinterpreta erros e ambiguidades como acertos.
Um terceiro ponto é que é muito comum, nesse tipo de relato, subestimar-se a inteligência das videntes. É compreensível: quando se pretende demonstrar que alguém fala por inspiração divina ou sobrenatural, convém reduzir ao máximo as expectativas quanto a uma possível inspiração mundana ou natural.
Mas, vivendo num meio católico onde havia vários padres imigrantes e em que as missas eram sempre rezadas em latim, não seria surpreendente que Maria da Luz, a mais articulada das duas videntes, tivesse pego uma compreensão, ainda que intuitiva, vaga e fragmentária, de alguns vocábulos e expressões estrangeiros. Somando-se a isso o que certamente denunciavam a linguagem corporal e a expressão facial dos padres interrogadores, e o caráter aleatório de muitas das respostas, os supostos diálogos poliglotas tornam-se bem menos "inexplicáveis".
No geral, as respostas, tal como filtradas pelos clérigos, parecem ratificar o que o padre José Kehrle e seu companheiro na defesa da crença na aparição, o frade Estêvão Roettger, esperavam ouvir, incluindo a confirmação, pela "santa", do caráter milagroso dos fenômenos em torno da mística alemã Therese Neumann. Outros padres e o bispo local, no entanto, não foram persuadidos.
Um ponto levantado por Sandra L. Zimdars-Swartz em seu estudo é o de que aparições marianas tendem a crescer -- no sentido de se tornarem foco de devoção ampla, para além da comunidade original dos videntes, ou mesmo ganhar importância internacional -- quando algum grupo político vê a oportunidade de "sequestrá-las" para sua causa. Aparições podem ser motores eficientes para converter energia religiosa em torque político.
Em seu livro, a antropóloga cita, entre outros casos, o do entusiasmo inicial dos monarquistas franceses pelos videntes de La Salette, ou o contexto de Guerra Fria em que a mensagem de Fátima, com seus "segredos" de tom apocalíptico, ganhou importância e reverberação. Zimdars-Swartz dá ainda especial destaque ao caso de uma aparição ocorrida na Itália, a de San Damiano, na época do Concílio Vaticano II, que se tornou foco de devoção de grupos de católicos ultraconservadores, principalmente de fiéis ligados ao arcebispo franco-suíço (cismático, depois excomungado) Marcel Lefebvre. Talvez não por coincidência, a aparição de San Damiano foi considerada indigna de fé pela diocese local.
O que nos traz à mensagem imputada à aparição pernambucana: ela está carregada de uma preocupação quase obsessiva com o comunismo. "O comunismo virá ao Brasil?", pergunta o padre Kehrle. "Sim", responde a santa, por intermédio das meninas, ominosamente: no contexto histórico-cultural das aparições, essa era uma péssima notícia. E não só virá, acrescenta ela, como virá com derramamento de sangue e perseguição aos católicos. Mas, no fim, o Brasil será salvo, promete a aparição, pela força de orações penitências.
Medo do "comunismo ateu" estava bem dentro do zeitgeist católico latino-americano da época: não só o Brasil vivera a Intentona de 1935 como, na Espanha da Guerra Civil, a Igreja Católica se via como vítima de uma perseguição anticlerical por parte do governo republicano, apoiado pelos socialistas e pela União Soviética. Desse modo, a aparição estava ligada às preocupações da ala mais conservadora do catolicismo do Brasil de seu tempo. Questão: ela está ligada às preocupações dos católicos conservadores do Brasil do nosso tempo? Em outras palavras, por que o interesse nesse episódio obscuro, e já quase esquecido, da história da religiosidade popular vem sendo retomado nos últimos anos?
A polarização político-ideológica do país, com apelo por uma politização cada vez mais radicalizada do conservadorismo cristão -- seja de matriz católica ou protestante --, pode oferecer a resposta. O autor de Eu Sou a Graça chega a apresentar uma lista dos partidos políticos brasileiros atuais que considera de inspiração comunista e, portanto, indignos do voto católico.
O que sugiro não é uma teoria da conspiração, mas apenas a observação do que pode muito bem ser um movimento natural na tectônica das ideias: a direita católica, cada vez mais vibrante e articulada, encontrando um estandarte com o qual poderá atrair um número de fiéis mais ligados a fenômenos sobrenaturais ou carismáticos, normalmente menos interessados em política. Se Fátima foi uma arma contra o comunismo na Europa, talvez o Sítio Guarda venha a ser uma contra o esquerdismo brasileiro.
Eu Sou a Graça menciona a existência, anos atrás, de planos para a construção de um complexo turístico no Sítio Guarda, e que só não prosperaram porque a área, hoje, encontra-se incorporada a território indígena. Mas, do modo como sopram os ventos no governo federal, este talvez seja só um embaraço temporário. Será interessante observar a movimentação do lobby pelo reconhecimento eclesiástico das aparições de 1936, ver se a causa avança ou não e por quem será abraçada. Por fim, ouvir qual será o discurso se -- quando? -- a narrativa da aparição de 1936 chegar mesmo ao mainstream.
O catálogo do Instituto Internacional de Pesquisas Marianas de Dayton listava, até 2014, sete ocorrências no país, seis ainda em aberto -- isto é, sem decisão de um bispo sobre se a aparição é ou não digna de crédito -- e uma com decisão negativa. Pesquisas subsequentes mostraram que nenhuma delas teve impacto na consciência popular comparável aos casos de que tratei no livro (Guadalupe, Lourdes, Fátima). O fenômeno de devoção mariana mais relevante para a história do Brasil, até agora, foi a descoberta da imagem original de Aparecida, por pescadores, no século XVIII, mas só metaforicamente esse evento pode ser considerado um "milagre".
Esse cenário pode estar prestes a mudar, porém. Lançado há poucos meses, o livro Eu Sou a Graça, do monge beneditino Dom Rafael Maria Francisco da Silva, busca chamar atenção para uma série obscura de aparições de Maria em Pernambuco, entre os anos de 1936 e 1937. Ela é tão obscura, de fato, que sequer é mencionada no catálogo de Dayton, que se pretende exaustivo e reúne quase 400 ocorrências ao longo dos últimos 100 anos.
Mas resgatar e atribuir novos significados a aparições marianas perdidas do passado não é incomum, ainda mais em tempos disputa ideológica e de tensão política: a narrativa em torno dos eventos de Fátima, por exemplo, só veio a tomar a forma presente, com ênfase nos "três segredos", décadas depois das aparições de 1917, quando a publicação da Terceira Memória da vidente Lúcia dos Santos, em 1941, permitiu uma reinterpretação das aparições como um alerta anticomunista. "Autoridades católico-romanas a Europa encontraram, na Virgem de Fátima, uma fonte importante para conter a disseminação do comunismo", escreve Zimdars-Swartz.
A história do fenômeno pernambucano, tal como narrada em Eu Sou a Graça, parece saída do roteiro de algum filme perdido do Cinema Novo: as videntes são duas meninas adolescentes, uma branca e uma negra; o padre que as defende dos céticos e da hierarquia eclesiástica truculenta. José Kehrle, é um imigrante alemão e o confessor favorito de Lampião; a mãe de uma das meninas dá à luz e depois perde o filho recém-nascido, ainda de poucos dias, durante o pânico e o caos causados por um assalto de cangaceiros à região em que vivia a família. De fato, a primeira aparição ocorre quando uma das meninas questiona, após a morte trágica do bebê, quem poderá protegê-las de Lampião, pergunta retórica prontamente respondida pelo surgimento da imagem luminosa de Maria.
Exceto pelos detalhes de cor local, no entanto, as ocorrências no Sítio Guarda, em Pernambuco, em tudo seguem a estrutura apontada por Zimdars-Swartz para o "novo tipo" de aparição mariana inaugurado em La Salette, na França, nos anos 1840, que depois se consolidaria em Lourdes e Fátima e que seria seguido, como uma espécie de gabarito, por inúmeros outros eventos ao longo da segunda metade do século XIX e por todo o século XX.
Nesse gabarito, a figura de Maria manifesta-se como uma aparição -- isto é, como um objeto concreto, integrado ao ambiente -- e não como uma visão, algo que surge num estado alterado de consciência, num êxtase místico ou vem num sonho; os principais videntes são crianças ou adolescentes, preferencialmente do sexo feminino (e não padres, monges, santos); a aparição se dá num espaço aberto, não numa cela, quarto, dentro de uma igreja, num claustro; o fenômeno é serial (as aparições se repetem ao longo de vários dias); e é público, no sentido de que, à medida que os episódios se repetem, mais e mais pessoas se juntam em torno dos videntes e, por meio deles, tomam conhecimento das mensagens da santa.
Aqui, aliás, há um detalhe importante, que às vezes é minimizado: em todos os relatos-padrão de aparições marianas, de La Salette a Fátima (e em Pernambuco, também), só quem vê e ouve a figura sobrenatural são os videntes eleitos -- geralmente crianças e, quase sempre, liderados por alguém do sexo feminino. As multidões ao redor apenas olham para o vazio e esperam que os escolhidos narrem o que a imagem faz e reportem o que diz. Sob esse um ponto de vista, acreditar numa aparição equivale a acreditar no que uma criança relata a respeito dos gestos e palavras de uma amiga imaginária.
Às vezes, alguma evidência auxiliar é citada, por exemplo curas ou profecias, mas quase nunca são tão sólidas quanto os apologistas querem fazer crer. As mais impressionantes das profecias de Fátima -- por exemplo, a de que a Rússia viria a ser uma ameaça à paz mundial -- embora supostamente tenham sido feitas em 1917, só foram publicadas décadas depois, quando os eventos "previstos" já tinham se consumado.
Perguntas, perguntas
No caso do Sítio Guarda, em Eu Sou a Graça são apresentadas transcrições de conversas em que as meninas videntes reproduzem, em português, as respostas dadas pela aparição a questões formuladas, por padres, em latim, alemão e italiano. O autor parece convencido de que essas respostas, consideradas por ele geralmente corretas, permitem excluir, por completo, a possibilidade de fraude.
Há várias coisas a ponderar aí: a primeira é que "verdade/fraude" representa uma falsa dicotomia. As aparições podem ao mesmo tempo não serem "verdadeiras" (isto é, não serem de fato comunicações factuais do fantasma de uma jovem judia de 2000 anos que teve um filho chamado Jesus) e também não serem "fraudes" (falsidades deliberadas). Calvin, afinal, não está exatamente mentindo quando descreve o comportamento de Haroldo para os pais.
A segunda é que há bastante latitude para questionar o tal caráter "correto" das respostas. Além de algumas delas serem objetivamente erradas, há vários momentos em que a aparição simplesmente parece distribuir "sins", "nãos", silêncios enigmáticos e gestos ambíguos ao acaso, o que requer alguma caridade interpretativa (e um certo contorcionismo teológico) para que se possa considerá-las "corretas".
Não custa nada lembrar que as pessoas que consultam cartomantes e astrólogos, por exemplo, consistentemente declaram ter recebido muito mais informação objetiva e precisa do que o "sensitivo" forneceu de verdade. A mente do ouvinte, de modo muitas vezes inconsciente, preenche lacunas, atribui significados, condensa tergiversações e, o que é crucial, reinterpreta erros e ambiguidades como acertos.
Um terceiro ponto é que é muito comum, nesse tipo de relato, subestimar-se a inteligência das videntes. É compreensível: quando se pretende demonstrar que alguém fala por inspiração divina ou sobrenatural, convém reduzir ao máximo as expectativas quanto a uma possível inspiração mundana ou natural.
Mas, vivendo num meio católico onde havia vários padres imigrantes e em que as missas eram sempre rezadas em latim, não seria surpreendente que Maria da Luz, a mais articulada das duas videntes, tivesse pego uma compreensão, ainda que intuitiva, vaga e fragmentária, de alguns vocábulos e expressões estrangeiros. Somando-se a isso o que certamente denunciavam a linguagem corporal e a expressão facial dos padres interrogadores, e o caráter aleatório de muitas das respostas, os supostos diálogos poliglotas tornam-se bem menos "inexplicáveis".
No geral, as respostas, tal como filtradas pelos clérigos, parecem ratificar o que o padre José Kehrle e seu companheiro na defesa da crença na aparição, o frade Estêvão Roettger, esperavam ouvir, incluindo a confirmação, pela "santa", do caráter milagroso dos fenômenos em torno da mística alemã Therese Neumann. Outros padres e o bispo local, no entanto, não foram persuadidos.
Pânico vermelho
Um ponto levantado por Sandra L. Zimdars-Swartz em seu estudo é o de que aparições marianas tendem a crescer -- no sentido de se tornarem foco de devoção ampla, para além da comunidade original dos videntes, ou mesmo ganhar importância internacional -- quando algum grupo político vê a oportunidade de "sequestrá-las" para sua causa. Aparições podem ser motores eficientes para converter energia religiosa em torque político.
Em seu livro, a antropóloga cita, entre outros casos, o do entusiasmo inicial dos monarquistas franceses pelos videntes de La Salette, ou o contexto de Guerra Fria em que a mensagem de Fátima, com seus "segredos" de tom apocalíptico, ganhou importância e reverberação. Zimdars-Swartz dá ainda especial destaque ao caso de uma aparição ocorrida na Itália, a de San Damiano, na época do Concílio Vaticano II, que se tornou foco de devoção de grupos de católicos ultraconservadores, principalmente de fiéis ligados ao arcebispo franco-suíço (cismático, depois excomungado) Marcel Lefebvre. Talvez não por coincidência, a aparição de San Damiano foi considerada indigna de fé pela diocese local.
O que nos traz à mensagem imputada à aparição pernambucana: ela está carregada de uma preocupação quase obsessiva com o comunismo. "O comunismo virá ao Brasil?", pergunta o padre Kehrle. "Sim", responde a santa, por intermédio das meninas, ominosamente: no contexto histórico-cultural das aparições, essa era uma péssima notícia. E não só virá, acrescenta ela, como virá com derramamento de sangue e perseguição aos católicos. Mas, no fim, o Brasil será salvo, promete a aparição, pela força de orações penitências.
Medo do "comunismo ateu" estava bem dentro do zeitgeist católico latino-americano da época: não só o Brasil vivera a Intentona de 1935 como, na Espanha da Guerra Civil, a Igreja Católica se via como vítima de uma perseguição anticlerical por parte do governo republicano, apoiado pelos socialistas e pela União Soviética. Desse modo, a aparição estava ligada às preocupações da ala mais conservadora do catolicismo do Brasil de seu tempo. Questão: ela está ligada às preocupações dos católicos conservadores do Brasil do nosso tempo? Em outras palavras, por que o interesse nesse episódio obscuro, e já quase esquecido, da história da religiosidade popular vem sendo retomado nos últimos anos?
A polarização político-ideológica do país, com apelo por uma politização cada vez mais radicalizada do conservadorismo cristão -- seja de matriz católica ou protestante --, pode oferecer a resposta. O autor de Eu Sou a Graça chega a apresentar uma lista dos partidos políticos brasileiros atuais que considera de inspiração comunista e, portanto, indignos do voto católico.
O que sugiro não é uma teoria da conspiração, mas apenas a observação do que pode muito bem ser um movimento natural na tectônica das ideias: a direita católica, cada vez mais vibrante e articulada, encontrando um estandarte com o qual poderá atrair um número de fiéis mais ligados a fenômenos sobrenaturais ou carismáticos, normalmente menos interessados em política. Se Fátima foi uma arma contra o comunismo na Europa, talvez o Sítio Guarda venha a ser uma contra o esquerdismo brasileiro.
Eu Sou a Graça menciona a existência, anos atrás, de planos para a construção de um complexo turístico no Sítio Guarda, e que só não prosperaram porque a área, hoje, encontra-se incorporada a território indígena. Mas, do modo como sopram os ventos no governo federal, este talvez seja só um embaraço temporário. Será interessante observar a movimentação do lobby pelo reconhecimento eclesiástico das aparições de 1936, ver se a causa avança ou não e por quem será abraçada. Por fim, ouvir qual será o discurso se -- quando? -- a narrativa da aparição de 1936 chegar mesmo ao mainstream.
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