Arma de fogo e saúde pública



Um dado curioso no debate empírico sobre a posse de armas de fogo por cidadãos comuns é que ele geralmente gira em torno da questão da segurança pública, e muito pouco da questão da saúde pública. Parando para pensar no assunto, é uma situação estranha: se coisas como automóvel, cachaça, cigarro e até telefones celulares são avaliadas sob a perspectiva do efeito na saúde da população, por que não armas de fogo?

Resposta: porque, nos Estados Unidos, país que financia a maior parte das pesquisas sobre saúde do mundo, um poderoso lobby político sabota, quando não ostensivamente proíbe, qualquer tentativa de se usar dinheiro público para enquadrar as armas de fogo como questão sanitária. Uma peça de opinião publicada recentemente na revista Nature volta a chamar a atenção para esse problema. Em 2013, um abaixo-assinado de uma centena de cientistas já batia na mesma tecla.

"O governo dos Estados Unidos, em  benefício do lobby da bala, limita a compilação de dados, impede que pesquisadores tenham acesso a boa parte dos dados coletados e restringe severamente o financiamento disponível para pesquisa sobre armas de fogo", escreve o autor do artigo na Nature, David Hemenway, professor de política de saúde da Universidade Harvard. O gráfico abaixo mostra que, embora armas de fogo sejam a segunda maior causa de morte de menores de idade nos EUA, elas são o fenômeno de saúde pública menos estudado entre todos os que afetam a juventude:



A resistência do lobby da bala norte-americano à pesquisa sobre os efeitos das armas de fogo na saúde pública tem uma causa clara: o medo (a certeza?) de que os resultados serão catastróficos. A pouca pesquisa existente já aponta isso: levantamento publicado em 2014, reunindo os resultados de diversos estudos sobre a relação entre acesso a armas de fogo no lar e taxas de homicídio e suicídio apontou chance elevada de suicídio "completo" (quando a tentativa leva à morte do suicida) e de vitimização por homicídio em lares onde há armas de fogo disponíveis.

A chance de suicídio é três vezes maior do que em domicílios sem arma. A de ser morto por arma de fogo é o dobro. Isso sugere que a disponibilidade da arma favorece a conversão de impulsos momentâneos em decisões irrevogáveis.

No geral, a literatura disponível indica que uma pessoa que tem uma arma em casa vai usá-la -- em ordem decrescente de probabilidade -- para nada (a arma fica pegando poeira no fundo do armário); para se machucar ou ver algum ente querido machucado num acidente; para se matar; para matar alguém por besteira (briga de casal, briga de trânsito, etc.); e, lá em último lugar, bem, mas bem abaixo do resto mesmo, para salvar uma vida ou preservar propriedade.

Mesmo na Suíça, geralmente apontado como um país-exemplo pelos defensores do armamento amplo da sociedade civil, uma redução na disponibilidade de armas de fogo trouxe queda nas taxas de suicídio.  Sei que muita gente olha para os dados e fica com a impressão de que estatística é uma coisa que acontece com os outros, que seu caso vai ser a exceção. O problema é que, se todo mundo que pensa que é a exceção realmente fosse, a estatística seria outra.

A resistência ao estudo do armamento como problema de saúde pública reflete, além do óbvio embaraço de relações públicas, a questão de que pesquisas sobre saúde tendem a sugerir ações de saúde -- nos Estados Unidos, por exemplo, trabalhos sobre o impacto da concessão de carteiras de habilitação a adolescentes (a partir dos 16 anos) na mortalidade dos jovens levaram à criação de medidas restritivas, como a concessão de licenças parciais para dirigir -- onde o jovem é liberado para guiar apenas durante o dia, digamos.

Políticas de saúde pública que atuam regulando comportamentos muitas vezes geram disputas filosóficas a respeito da extensão da tutela do Estado sobre a esfera privada e no sagrado direito do indivíduo de assumir os riscos que achar necessários.

As leis contra o tabagismo enfrentaram esse tipo de debate, e elas oferecem um bom guia: elas só assumiram sua forma mais restritiva depois que os malefícios do fumo de segunda mão foram constatados -- porque aí o risco não era mais só do fumante, mas acabava compartilhado, involuntariamente, com todas as pessoas ao redor.

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