Monstro de Loch Ness como "fake news"




Em 1983, o livro The Loch Ness Mystery Solved, de Ronald Binns, obteve aquele feito raro no mundo da literatura sobre mistérios do mundo real: apresentou, de fato, a solução do problema. Em pouco mais de 200 páginas, Binns destrincha cuidadosamente o caso do lago escocês, mostrando como uma série de testemunhos vagos, notícias sensacionalistas, fraudes e brincadeiras (porque, claro, o ser humano é um animal intratável) acabou moldando a narrativa de uma criatura pré-histórica vivendo em Loch Ness.

Agora em 2017, mais de 30 anos depois de seu triunfo, Binns publica um novo volume, The Loch Ness Mystery Reloaded, em que revisita a evidência coligida para o livro de 1983, atualiza alguns pontos -- por exemplo, incluindo a confissão do criador do dinossauro de brinquedo que gerou a famosa foto do monstro de 1934 (a "Fotografia do Cirurgião", abaixo) e reinterpreta a gênese do mito sob o enfoque atual das "fake news".



O momento zero da lenda do Monstro de Loch Ness pode ser rastreado a duas notas publicadas em maio de 1933 na imprensa escocesa -- mais precisamente, nos jornais Inverness Courier e Northern Chronicle -- afirmando que um casal havia avistado uma criatura, "seu corpo semelhante ao de uma baleia", no lago. As notas não traziam nome do jornalista responsável, mas Binns aponta que ambas tiveram o mesmo autor: Alex Campbell, um guarda-pesca do lago e correspondente jornalístico nas horas vagas. Nas décadas seguintes, Campbell viria a se tornar uma espécie de astro no mundo dos caçadores de monstros, alegando ter visto a criatura de Loch Ness 18 vezes (sem jamais ter uma máquina fotográfica à mão).

"A lendária notícia de 2 de maio de 1933 começa com a falsa alegação de que 'há gerações' o Lago Ness era conhecido como o lar de 'um monstro assustador'", escreve Binns em seu novo livro, comentando, um pouco adiante, que o texto se inscreve muito bem na categoria definida pelo jornalista britânico Nick Davies como "notícias da Terra Plana" ou "o que, no ano de 2017, seria chamado de 'fake news'". Citando Davies, Binn aponta três características das "Notícias ad Terra Plana": uma afirmação duvidosa apresentada sem análise crítica; a figura responsável pela história (e os interesses por trás dela) permanece oculta; e a história é "inserida nas artérias da mídia", circulando pelo mundo sem ser checada.

A sensação criada pela publicação original parece ter surpreendido Campbell. "Tendo inventado o Monstro de Loch Ness, ele ficou espantado com a crescente massa de evidência a favor de sua fantasia pessoal", escreve Binns. "Ele passou a acreditar na própria ficção". Essa "crescente massa de evidência" incluía desde depoimentos de pessoas que, influenciadas pela mídia, interpretavam qualquer anomalia na superfície do lago como sinal do "monstro" até fraudes -- como a "Foto do Cirurgião".

A origem da imagem foi revelada em 1994, numa reportagem investigativa publicada no jornal  The Sunday Telegraph, marcando dos 60 anos da divulgação original da foto. O cirurgião que supostamente fez o clique, Robert Wilson, na verdade apenas emprestou o nome para os verdadeiros autores da brincadeira, que precisavam que uma figura respeitável assumisse a autoria do feito.

O que a imagem mostra, revela a reportagem do Telegraph, é um submarino de brinquedo com uma "cabeça" de madeira plástica. Binns se diverte apontando os diversos especialistas -- incluindo fotógrafos e cientistas -- que, ao longo das décadas, afirmaram que a foto era verdadeira, por conta deste ou daquele detalhe.

Ele cita, por exemplo, dois oceanógrafos canadenses que chegaram a apresentar um paper numa conferência, em 1987, afirmando que a foto não só era verdadeira como também usando dados de velocidade do vento e perturbação da água para calcular o tamanho da parte visível do monstro: 120 centímetros acima do nível da água. Na verdade, o modelo de brinquedo tinha 30 centímetros de altura.

O autor chama atenção para o modo como "uma brincadeira arbitrária criou uma bola de neve inesperada". "Os participantes da fraude esqueceram-se dela e tocaram suas vidas, sem perceber que a fotografia geraria décadas de comentários".

Esta história, assim como a das Fadas de Cottingley, outra brincadeira que escapou ao controle dos idealizadores (no caso, idealizadoras) e produziu consequências inesperadas por décadas, pode servir de alerta para os tempos atuais. Se um par de notas publicadas anonimamente na imprensa escocesa foi capaz de criar uma indústria como a do Monstro de Loch Ness, do que postagens "inocentes" nas redes socais são capazes?

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