Ciência, tecnologia e pobreza
Cientistas e divulgadores costumam atribuir negação ou a hostilidade à ciência a questões político-ideológicas ou religiosas. Mas, em artigo publicado na edição mais recente da revista Skeptical Inquirer, o pesquisador de comunicação científica Matthew Nisbet cita trabalhos empíricos que sugerem outros fatores que influenciam essas posturas, incluindo um que parece ser ainda mais importante do que religião ou política, na determinação do olhar -- favorável ou hostil -- do público americano diante da ciência e da tecnologia: classe social. Os mais pobres desconfiam mais, e têm mais receio, de avanços científicos e tecnológicos.
"Essas pessoas podem ter uma preocupação justificada sobre como poderão competir numa economia baseada em inovação, pagar o preço dos novos avanços médicos e tecnológicos e como esses avanços poderão reforçar padrões de discriminação e outras desigualdades", escreve Nesbit.
Entre as principais fontes de preocupação encontram-se a automação -- incluindo inteligência artificial -- e biomedicina. Não se tratam apenas de medos distópicos, como de uma revolta de computadores ou da liberação de um vírus apocalíptico, mas de temores bem mais próximos e concretos: da destruição de empregos (por exemplo, por carros autoguiáveis) e do aumento das vantagens intrínsecas dos mais ricos (com terapias genéticas, implantes, drogas amplificadoras de performance, etc.).
A resposta tradicional da comunicação científica a esse tipo de receio é apontar que, historicamente, o avanço da tecnologia, mesmo se elimina postos de trabalho no curto prazo, acaba aumentando o acesso a bens e serviços antes altamente elitizados, incluindo saneamento, alimentação e comunicação.
A essa resposta, no entanto, pode-se contrapor a velha máxima de Lord Keynes, a de que, no longo prazo, todos estaremos mortos. Citando um exemplo específico, a possibilidade de que os carros autônomos venham a permitir que, dentro de 50 anos, todos andem de limusine não refresca em nada a vida do taxista que tem contas para pagar ontem. Além disso, há outro problema: faz tempo que a promessa de democratização dos benefícios da tecnologia demora, cada vez mais, para se cumprir.
Isso pode parecer contraintuitivo, numa realidade em o smartphone chegou ao camelô meros 20 anos após ter sido inventado, mas a ilusão se desfaz quando pensamos em outra frase de Keynes: sua previsão, feita em 1930, de que no fim do século 20 as pessoas só precisariam trabalhar só 15 horas por semana para ter uma vida digna.
Há várias explicações propostas para a falha da profecia, incluindo a de que nossa noção de "vida digna" mudou com o tempo (em 1930, ninguém pagava provedor de internet e TV a cabo), mas um estudo do ano passado mostra que, embora essas questões tenham lá seu peso, o principal fator foi uma desaceleração no crescimento da renda mediana.
Uma rápida digressão estatística: "mediana" é o que está no meio de uma lista. É diferente de "média", que é a soma dos valores da lista, dividida pelo número de itens que a compõe. Numa empresa onde o dono faz retiradas mensais de R$ 20 mil, o único funcionário recebe R$ 1 mil de salário e o estagiário trabalha de graça, a renda mediana é R$ 1 mil, mas a média é (20+1+0)/3, ou R$ 7 mil. Se o dono aumentar suas retiradas para R$ 40 mil, a mediana continuará a ser R$ 1 mil, mas a média sobe para R$13,6 mil.
O fato de a renda mediana subir mais devagar que o previsto por Keynes sugere que, embora a tecnologia possa ter se democratizado -- todo mundo tem um celular --, seus benefícios econômicos acabaram sendo concentrados mais depressa do que distribuídos.
Minha indústria de origem, o jornalismo impresso, oferece um um caso exemplar: ao longo dos últimos 30 anos, uma série de funções -- como a de revisor, copidesque, diagramador, compositor -- foram extintas ou tiveram seus efetivos drasticamente reduzidos, quase sempre graças a avanços tecnológicos. O encolhimento, no entanto, não se refletiu nem em aumento de renda para os que preservaram seus empregos, nem em melhora de preço ou qualidade para o leitor, muito antes pelo contrário.
Nessa, como em muitas outras áreas, a tecnologia acaba tendo um "Efeito Rainha Vermelha": sua adoção não permite avançar, mas apenas evita -- quando evita -- a perda de terreno.
Qual a saída, então? Ludismo? Não. Inventar modos mais fáceis e engenhosos de fazer as coisas é tão parte da natureza humana quanto respirar, e ganhos, ainda que lentos, acontecem. Mas isso é um argumento, e argumentos só têm força prática quando o outro lado encontra a paciência necessária para acompanhá-los. Se um aumento no ritmo da democratização dos benefícios não entrar a sério na agenda, o tsunami populista-obscurantista, que já assoma sobre tantos outros campos, vai acabar levando a ciência e a tecnologia junto.
Muito relevante esse fato das classes baixas temerem avanços científicos e tecnológicos. Acho que, indiretamente, Theodore Kaczynski acabou sendo um grande prenúncio desse neoludismo, dessa frequência global assíncrona com as atuais revoluções. Os taxistas ainda existem, misteriosamente, assim como os passageiros deles, dispostos a pagar por uma viagem sem mesmo saber o custo dela. Ficam a mercê da aleatoriedade do caos (em dois sentidos) no trânsito, uma nau à deriva sem ninguém no leme. Não é somente aquele terror pré-sindical de ser substituído no trabalho por robôs. Agora se soma essa letargia, ficar sem reação, como se as funções ligadas aos instintos de sobrevivência fossem desligadas. Viajando ainda mais no meu devaneio, acho que seriam assincronismos assim que inspiram cetáceos a encalharem em praias. São animais sencientes, e de alguma forma perderam a esperança de conviverem conosco, optando pelo suicídio coletivo.
ResponderExcluirLovecraft é outro que poderia ser citado. O assombro dele pelos avanços tecnológicos é recorrente nos contos. Era um sociólogo metafísico, um filósofo do pessimismo. A mitologia com grandes monstros dele também funciona como analogia aos grandes predadores, que são essas amálgamas de grandes corporações, multinacionais, conglomerados.