Faz sentido noticiar pesquisa pré-clínica?



Há mais ou menos um mês, assisti em São Paulo a uma apresentação do pesquisador Samuel Cohen, do Centro Médico da Universidade de Nebraska, sobre a crise de reprodutibilidade nas ciências. O que isso quer dizer?

A ideia é que, se a ciência se pretende produtora de conhecimento com validade universal -- e, por isso, tem em seus métodos uma forma de acesso ao conhecimento superior às alternativas (revelação divina, interpretação de sonhos, tradição familiar, etc) -- então seus resultados têm de ser reprodutíveis: a mesma equação que descreve a trajetória de uma maçã jogada para o alto aqui deve descrever a trajetória de uma maçã jogada para o alto na China. As leis da termodinâmica que regem o motor do meu carro (se eu tivesse um carro) regem o motor do jipe lunar.  E assim por diante.

Falei em motores. Além de seu papel epistemológico, a reprodutibilidade é, no fim, a grande fiadora da tecnologia. Se os resultados da física quântica, por mais malucos que sejam, não fossem reprodutíveis, o monitor em que você está lendo este artigo não funcionaria. A própria civilização industrial só é possível porque os mesmos princípios científicos, aplicados da mesma forma, produzem os mesmos resultados. Então, voilà: produção em massa.  

Claro, à medida que o objeto de estudo vai se tornando mais complexo, a reprodutibilidade vai ficando cada vez mais dependente do contexto. Um remédio para pressão arterial que funciona na maioria dos casos pode não funcionar para mim (esta é uma triste verdade, aliás).

Ainda assim, o princípio geral não muda: dentro de um contexto e sob condições adequadamente especificadas, todo resultado científico deve ser reprodutível. Se eu digo que uma droga para hipertensão funciona para pacientes homens obesos que a tomam em jejum e de ponta cabeça, então todo obeso do sexo masculino de ponta cabeça e barriga vazia deve se beneficiar dela.

Bom, o professor Cohen falou em "crise de reprodutibilidade". O que ele queria dizer? Sua apresentação coligiu dados de uma série de fontes (esta aqui, por exemplo) para apontar a seguinte conclusão: de 50% a 70% dos resultados positivos publicados de testes pré-clínicos -- aqueles realizados em células ou animais de laboratório -- são irreprodutíveis. Em português claro, são inúteis.

Ele menciona ainda um artigo de opinião publicado na Lancet em 2009 que concluía que 85% dos recursos aplicados em pesquisa pré-clinica acabam em "desperdício", por conta de vícios no processo de planejamento, execução e publicação dos estudos.

Cohen faz a importante ressalva de que os testes clínicos -- realizados em seres humanos, e que são o último estágio para a aprovação de uma droga ou tratamento -- são muito mais confiáveis do que isso, já que obedecem a padrões de qualidade bem mais estritos e sofrem pesada supervisão. Também custam muito mais. O problema não é que o tratamento aprovado, aquele que sai pela abertura menor do funil, não merece confiança: é que a boca de entrada do funil é grande demais e aceita muito do que que não devia.

Já escrevi em outras oportunidades sobre a questão da armadilha dos falsos positivos na pesquisa científica, então me limito a deixar um link para um dos meus artigos mais completos sobre o assunto. Também já tratei desse problema da ciência frente às pseudociências, em outro texto.

O que eu queria mesmo levantar nesta postagem diz respeito à responsabilidade dos jornalistas de ciência nesse contexto: afinal, vale a pena produzir matérias sobre resultados pré-clínicos? Dizer a nossos leitores/espectadores/ouvintes que a substância A ou B cura (ou causa) câncer (digamos) em camundongos realmente significa algo, ou estamos apenas preenchendo espaço vazio com conversa fiada, excitando medos ou esperanças falsos? Esse tipo de comunicação pode ter grandes efeitos de longo prazo, como a paranoia em torno de transgênicos ou do bisfenol A, por exemplo, comprova.

Faz muito tempo que não tenho mais a responsabilidade de decidir o que sai ou não sai em algum órgão de imprensa, mas me parece que já passou da hora de a profissão voltar a exercitar com mais afinco uma prerrogativa fundamental que ficou meio de lado desde a popularização da internet, com seu espaço infinito e seu gosto por hype: a de decidir não publicar.

Comentários

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  3. Acho que a pressão para publicar "descobertas" (antes de serem comprovadas) vem dos leitores gostarem de novidades - e quanto mais bombásticas, melhor. A saída, ao meu ver, seria fazer divulgação de resultados consagrados no meio acadêmico de formas variadas, com outras ênfases, mas bem ancorada em pesquisas robustas e já reproduzidas. Por outro lado, a conclusão de "que 85% dos recursos aplicados em pesquisa pré-clinica acabam em "desperdício", por conta de vícios no processo de planejamento, execução e publicação dos estudos" foi reproduzida por outros pesquisadores de forma independente?

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    1. Oi, Samuel! A conclusão de Chalmers & Glaziou é mais um juízo de valor que "hard science" (por exemplo, incluem na conta do desperdício os estudos que não abrem seus dados de forma ampla), mas as observações que fazem são bem persuasivas. Eles descrevem os dados e o raciocínio usado aqui: https://blogs.bmj.com/bmj/2016/01/14/paul-glasziou-and-iain-chalmers-is-85-of-health-research-really-wasted/

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    2. Faz mais sentido. Para evitar esse prejuízo, mais recursos, proporcionais, deveriam ser investidos, sem garantias absolutas de sucesso, o que pode impicar em mais desperdício. Complicado..

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