A 'dívida' do Ocidente para com o cristianismo

Volta e meia esbarro por aí com alguém soltando a velha conversa fiada de que as grandes conquistas da Civilização Ocidental são uma dádiva do cristianismo para o mundo. Ela ressurge, de modo nada surpreendente, neste artigo de Ives Gandra, publicado na Folha de S. Paulo.

Como eu pessoalmente partilho da opinião de Bertrand Russell -- para quem a única contribuição positiva do cristianismo foi o calendário, com seu sistema até que relativamente estável e racional de anos bissextos -- resolvi fazer aqui um rápido catálogo de desmentidos para, talvez, orientar os mais desavisados. Vamos lá:

Sem o conceito de um deus único, responsável pela ordem natural, a ciência, como busca de regularidades e leis na natureza, teria sido filosoficamente impossível, e estaríamos até hoje imersos em superstições.


Papo furado. A ideia de que eventos naturais são explicáveis por meio de causas naturais regulares remonta (pelo menos) a Tales de Mileto, uns 500 anos AEC.

Foi o cristianismo que nos deu o conceito de "humanidade", de que todos os seres humanos são iguais em direitos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade...


Mais papo furado. Não só a "irmandade universal dos homens" já era pregada pelos filósofos estoicos, de novo, em tempos seguramente pré-cristãos. Além disso, mencionar cristianismo e "igualdade de sexo" na mesma frase é, com o perdão da palavra, blasfêmia.

Se não fossem os monges copistas cristãos, muito do conhecimento e da literatura da Antiguidade teria se perdido durante a Idade Média.

Isso é até verdade, mas é uma verdade que precisa ser cuidadosamente qualificada. É engraçado como, quando essa joia particular de informação é passada aos estudantes nas aulas de História do ensino médio, ninguém (que eu saiba) se pergunta de onde veio o monopólio que os monastérios e igrejas tinham sobre os textos. E os templos pagãos do Mediterrâneo, as escolas de filosofia de Atenas, as grandes bibliotecas? Cadê? A resposta é que os outros lugares onde livros poderiam ter sido preservados já tinham sido destruídos, esmagados e engolidos pelo cristianismo.

A maioria dos críticos do cristianismo gosta de chamar atenção para momentos dramáticos como a morte de Hipácia de Alexandria, o fechamento da Academia de Platão por Justiniano, ou mesmo a queima de parte da Biblioteca de Alexandria; apologistas cristãos, por sua vez, destacam o que há de exagero dramático, duvidoso e relativo na significância desses episódios (usando critérios historiográficos que, se aplicados aos evangelhos... bom, deixa pra lá).

O fato é que, exagerados ou não, esses episódios particulares se inserem num grande padrão de perseguição de pagãos e hereges, e de conversões forçadas, bem exemplificado pela campanha do imperador Teodósio. Pode-se discutir, por exemplo, se a academia de Atenas foi realmente "fechada" por ordem de Justiniano, ou apenas estrangulada financeiramente por uma nova política imperial, mas nada disso muda o fato de que a cristianização do império levou a uma monopolização da cultura pela igreja -- um monopólio construído com o uso da força, sob a forma de perseguição e repressão.

Em resumo, restou ao cristianismo a tarefa de preservar a cultura da Antiguidade simplesmente porque o próprio cristianismo já havia se encarregado de eliminar todos os outros grupos que poderiam ter feito o mesmo. Olhando desse jeito, não me parece algo tão elogiável assim, mas vai ver é porque eu sou um ateu fundamentalista ranheta.

Comentários

  1. Perfeito! Contribuições da religião, a cristã em especial, ao ocidente e as sociedades foi feita "apesar" dela, e não "por" ela.

    Agradecer a religião cristã por ajudar a civilização ocidental, é como agradecer a micro-organismos patológicos pelo desenvolvimento da medicina moderna e seus antibióticos.

    Um abraço.

    Homero

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  2. Pô... vc acha legal um calendário que um mês tem 30 dias, outro 31 e as vezes 28 ou 29? A única sincronia que tem com o nosso sistema solar é o ano solar. Discordo quanto a essa sua opinião. Me parece mais interessante se tivessemos 13 meses de 28 dias, como os ciclos da lua. Seria mais integrado a natureza. Precisaria de um ajuste de um dia. E este poderia ser até feriado! =

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