Aos homens e mulheres de boa vontade

Resolvi aproveitar a postagem final do ano para tentar responder a uma pergunta que, sob várias formas, costuma aparecer nas caixas de comentários sempre que escrevo algo "desmistificador", como este texto sobre a natividade, minha pequena introdução ao estudo da Bíblia ou, mesmo, que ouço de viva voz, quando discuto o meu recente Livro dos Milagres. A questão, como disse, vem em diversas roupagens, mas sua formulação mais geral é: "A quem você se dirige com isso?"


Implícita por trás da pergunta está a premissa de que apontar o que há de mundano, contraditório e mitológico por trás das narrativas sagradas do cristianismo é inútil porque, (a) se o leitor já concorda comigo a priori, eu estou apenas chovendo no molhado; (b) se o leitor é um cristão fundamentalista, ele certamente tem um amplo arcabouço de justificativas e tergiversações à disposição capaz de neutralizar o impacto, se impacto houver, do que escrevo; (c) se o leitor for um cristão "liberal", ele provavelmente já sabe que tudo é mitologia mesmo, e considera a informação que transmito irrelevante.

A premissa, por sua vez, se apoia em dois pressupostos: primeiro, o de que toda publicação desmistificadora é adversarial, isto é, faz parte de uma batalha dialética com o "outro lado" e, portanto, deve ser avaliada por sua capacidade de causar baixas no "inimigos"; essa é uma proposição que não me parece exata, e de que pretendo tratar no fim da postagem.

O segundo é um tipo de relativismo cultural que vê os grupos humanos isolados dentro do que costumo chamar de "bolhas epistêmicas" -- sistemas de obtenção e validação de conhecimento fechados em si mesmos e impermeáveis a ataques de fora.

A ciência, por exemplo, com seus critérios de objetividade e reprodutibilidade, seria apenas uma dessas bolhas; o fundamentalismo religioso, com suas balizas de fidelidade à escritura, respeito à tradição e à autoridade, seria outra. O romantismo, com seu apelo ao sentimento e à intuição, formaria uma terceira, e assim por diante.

Nessa visão, não há uma hierarquia possível entre as diferentes bolhas para além do costume e da conveniência imediata, e qualquer tentativa de usar os valores de uma para avaliar as demais reflete uma condenável falta de sofisticação filosófica, um triste provincianismo e, pior ainda, é um lamentável indicador de pulsões fascistas e autoritárias, inconscientes ou nem tanto.

Trata-se de um sofisma até que razoavelmente plausível. É dele que nasce, por exemplo, o dito de que os cardeais que se recusaram a olhar pelo telescópio de Galileu, alegando que tudo o que precisavam saber sobre o céu estava nas escrituras, não eram covardes ignorantes, mas sim sutis filósofos: Galileu tirava a verdade dele do telescópio, os cardeais tiravam a verdade deles da Bíblia, e todos estavam certos, cada um do seu jeito.

É uma formulação sedutora, especialmente útil para manter a paz em festas infantis, mesas de bar e jantares de fim de ano. Parece tão invulnerável quanto o Titanic devia parecer enquanto atracado em Southampton, Inglaterra. E, de fato, é tão condenada ao desastre quanto o malfadado transatlântico.



Como notou o filósofo Paul Boghossian em seu ensaio Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism, é errado imaginar que "escritura" e "telescópio" fossem as fontes epistêmicas primárias na questão entre Galileu e os padres. Como, afinal, os sacerdotes sabiam o que a escritura dizia? Eles usavam os olhos para ler as palavras num livro; usavam suas mentes para interpretá-las; e mantinham a confiança, metafísica talvez, de que as palavras continuariam a ser as mesmas -- que o conteúdo da Bíblia não mudaria entre uma leitura e outra.

Esses três processos fundamentais -- confiança nos sentidos; confiança na razão; confiança na regularidade do mundo -- eram exatamente os mesmos que levavam Galileu a concluir que Júpiter tinha luas, que Vênus apresentava fases (e, portanto, girava em torno do Sol). Os cardeais não tinham um argumento legítimo que lhes permitisse negar o que veriam pelo telescópio sem, ao mesmo tempo, pôr em dúvida o que viam nas páginas de suas Bíblias!

E, de repente, "covardia" parece uma explicação mais razoável para a recusa em examinar os céus do que "sutileza filosófica".

A constatação de que todas as "bolhas epistêmicas" na verdade têm uma base comum na experiência humana basta para explodi-las -- ou, ao menos, para explodir a ideia de que são fundamentalmente incomensuráveis. Passa, até, a ser possível hierarquizá-las, à medida em que percebemos que umas fazem uso mais consistente e apurado das bases comuns do que outras.

Fiz a exposição acima para explicar porque considero que o fundamentalismo não é, de modo algum, filosoficamente inatacável pelo lado de fora. Antes de confiar nas tradições e na escritura é preciso confiar nos próprios olhos e ouvidos e na capacidade de raciocinar a partir do que se ouve e do que se vê. E é nesse nível subjacente que a desmistificação, em termos ideais, atua.

Claro, o fundamentalismo pode ser psicologicamente inatacável, mas essa é uma questão individual, peculiar a cada leitor. Cada um reage aos fatos que apresento de acordo com as próprias luzes. O que não posso fazer é -- sem trocadilho -- pecar por omissão. Minha experiência pessoal é a de que há, por aí, muitos "crentes inerciais", pessoas que continuam a aceitar mitos como fatos simplesmente porque não sabem que há explicações alternativas à mão. Este é o meu leitor ideal: alguém cujo horizonte possa ser ampliado pelo que escrevo.

Em uma de suas cartas a Harry Houdini, Arthur Conan Doyle disse que se via forçado a atacar as críticas que o grande mágico fazia ao espiritismo para que elas não passassem a ser vistas como expressões da verdade simplesmente por ausência de contestação ou, na exata palavra empregada pelo romancista, por "default". Embora minha visão do mundo dos espíritos esteja muito mais alinhada à de Houdini que à de Conan Doyle, posso dizer que meu objetivo é precisamente o mesmo: evitar o "default", manter as alternativas à tona.

O que nos traz à questão de se todo esforço desmistificador é, necessariamente, adversarial, no sentido de que deve ser medido por conta de sua eficiência tática e estratégica na contínua guerra cultural entre crentes e racionalistas, ou teocratas e laicistas.

Minha convicção pessoal é de que não: a verdadeira medida de uma exposição que se pretende factual deve ser sua veracidade e sua coerência, não sua conveniência. Isso não impede, claro, que questões de conveniência sejam abertas à discussão, mas não devemos perder de vista seu caráter subalterno.

Por fim, proponho a ideia de que toda manifestação desmistificadora que passe nos testes de veracidade e coerência -- mesmo as mais hostis, grosseiras e desrespeitosas, como esta aqui, por exemplo -- cumprem a função fundamental de afastar o risco do "default". E só isso basta para que tenham valor.

Então, a quem me dirijo, afinal? A resposta, suponho que os leitores já tenham adivinhado, está lá no título.

Comentários

  1. Parabéns por mais esse texto, Orsi.

    Acaba de me ocorrer um exemplo (um relato anedótico, de fato, mas é precisamente de opiniões e experiências particulares que estamos falando).

    Um amigo, até pouco tempo cristão, mandou-me um email falando ser esse "o primeiro Natal que passa sem deus".

    Não reconhecer que as pessoas podem mudar de opinião até sobre questões tão fundamentais é recusar-se a admitir que somos epistemicamente falíveis - uma aposta cega de uma soberba monumental.

    Há, ainda, uma outra resposta a este mal disfarçado "a quem interessa?". A resposta é: porque é verdade.

    Simples assim. Importa dizer porque é verdade.

    Ou, como Desidério Murcho comentou num texto anos atrás, do qual reproduzo alguns trechos aqui:

    "Um leitor ficou inquieto com a razão de ser desta minha chamada de atenção para a nossa dimensão. Mas não é preciso outra justificação além desta: é verdade.

    "Outra questão é saber que tipo de consequências se podem tirar daqui. Uma consequência que não se pode tirar daqui, como Thomas Nagel argumentou definitivamente em 1971 no artigo "O Absurdo", é a ideia de que a nossa vida perde importância ou sentido por causa disso. Isto porque se a nossa vida não faz sentido à dimensão que temos, não se entende por que razão faria mais sentido se fôssemos tão grandes que ao esticar os pés batêssemos nas fronteiras do universo.

    "Contudo, o mais importante desta escala é, repito, uma coisa simples: é verdade. Nenhuma mundividência, nenhuma perspectiva sobre a vida humana, a felicidade e o futuro, sobre o sentido e realização espiritual pode estar certa se não tiver em conta esta verdade simples. E quem me deu a noção desta verdade simples foi um homem que já morreu. Chamava-se Carl Sagan e devo-lhe o universo."

    (Aqui: http://dererummundi.blogspot.com/2008/02/nossa-dimenso.html )
    ---
    "Devo-lhe o universo."

    A um homem, não a um deus.

    Abraços, boas festas (religiosas, aos religiosos, e de quaisquer outras espécies, aos demais) e tudo de bom a todos em 2012.

    Lennine.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns por mais esse texto, Orsi. (2)

    Outro ótimo texto, e um que eu gostaria de ter escrito (mais um.:-), pois é exatamente por isso que eu escreve, converso, debato.

    E gostei muito do comentário do Lenine também, e das frases postadas.

    Devo-lhe o universo, eu também, a Sagan.

    Um abraço.

    Homero

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A maldição de Noé, a África e os negros

O zodíaco de 14 constelações e a Era de Aquário

Fenda dupla, consciência, mente, matéria... que papo é esse?