Guia prático da pseudociência negacionista
Negacionismo é um fenômeno que ocorre quando um determinado dado da realidade, confirmado por sólida evidência científica, por algum motivo, desagrada tão profundamente uma determinada parcela da sociedade que passa a ser lucrativo -- psicológica, política ou financeiramente -- tergiversar a respeito. Hoje em dia a vítima mais evidente é o aquecimento global de origem humana, mas já houve picos envolvendo, por exemplo, a natureza cancerígena da fumaça de tabaco, a evolução das espécies por meio de seleção natural, o Holocausto na 2ª Guerra.
Embora cada um dos negacionismos citados tenha especificidades próprias, há algumas estratégias comuns, adotadas por todos. Um livro que trata do assunto é o Merchants of Doubt. Abaixo, apresento algumas das jogadas clássicas do negacionismo:
Encontre acadêmicos que defendem o seu ponto de vista.
É só procurar. Do mesmo modo que conviver com a Hustler (e, vá lá, com a Veja) é o preço a pagar pela liberdade de imprensa, o preço da liberdade de investigação acadêmica é haver catedráticos falando bobagem: procurando bem, deve dar para achar até um astrônomo que ainda defenda que o Sol gira em torno da Terra. Claro, gente assim é minoria, e o melhor que um leigo pode fazer é se guiar pelo consenso da comunidade científica, não pela opinião de especialistas isolados, mas na hora de montar o seu documentário (ou livro, ou reportagem) você pode passar por cima desse critério que (quase) ninguém vai ligar.
Cite fatos científicos corretos, mas irrelevantes para o assunto em questão.
"A órbita da Terra não é circular, é elíptica"."Aranhas não são insetos". "O derretimento do gelo que flutua sobre o Oceano Ártico não elevará o nível dos mares". "Cidades criam ilhas de calor". Coisas assim devem ser ditas no mesmo tom em que as patricinhas de anedota dizem "Hellooooo-ôu", a insinuação sendo a de que a implicação a favor da tese negacionista é tão óbvia e fulgurante que não precisa ser explicitada, a menos que o ouvinte seja um idiota. Como ninguém gosta de passar por idiota, todo mundo balança a cabeça, espertamente, e o argumento inválido, devidamente vaselinado, desliza feliz rumo ao alvo.
Descontextualize a ciência.
Afirmações como "erupções vulcânicas injetam milhares de toneladas de CO2 na atmosfera" muitas vezes são usadas para causar um clima de impotência -- como não dá para controlar o que os vulcões fazem, para que se preocupar com as míseras emissões humanas? Para estar no contexto adequado, no entanto, essa afirmação deveria vir suplementada pelo dado de que o efeito dos vulcões no clima é, majoritariamente, de resfriamento, por conta do enxofre e de outras partículas que eles lançam na atmosfera; pelo fato de que as emissões humanas de CO2 já superam as vulcânicas; e, por fim, pela constatação do óbvio: não temos controle sobre os vulcões mas temos (algum) controle sobre nós mesmos.
Manipule desonestamente o conceito de "dúvida" científica.
Uma das coisas que tornam a ciência uma empreitada maravilhosa é sua incapacidade de reconhecer verdades absolutas. Mesmo que uma verdade absoluta seja descoberta -- um candidato razoável seria, por exemplo, a afirmação de que todos os seres vivos da Terra têm um ancestral comum -- o processo científico jamais fechará de vez a questão a respeito.
Sempre haverá a possibilidade (cada vez mais remota, mas sempre aberta) de novas evidências demonstrarem que o que parecia verdade era, de fato, apenas ilusão, ou somente uma versão grosseiramente simplificada de como as coisas realmente são. Negacionistas tentam lançar mão desse componente de dúvida estrutural que acompanha toda afirmação científica para deslegitimar diagnósticos dos quais discordam (que cigarro faz mal, que todos temos um ancestral comum, que a revolução industrial vem aquecendo a Terra, etc.).
Ao fazer isso, no entanto, eles deliberadamente passam com o trator por cima de três conceitos importantes: o de dúvida razoável, o de informação boa o suficiente e o de ação responsável. Por partes.
Embora toda dúvida seja possível, nem toda dúvida é razoável, frente às evidências disponíveis. Por exemplo, você pode duvidar que esteja lendo esta postagem -- talvez isto tudo seja um sonho especialmente tedioso -- mas, qual o motivo, a evidência, para isso?
Quanto à informação boa o suficiente: em muitos casos, até sabemos que os dados que temos não correspondem a como as coisas realmente são, mas ainda assim eles são bons o bastante para guiar certos tipos de decisão -- você não precisa de fotos de altíssima definição de uma paisagem para saber onde acaba a floresta e começa o deserto, e a Nasa se vira muito bem com as leis de Newton para navegar suas sondas, mesmo sabendo que o trabalho de Einstein é superior.
Já ação responsável é, ora bolas, ação responsável. Não é porque existe a possibilidade filosófica de que a lei da conservação da energia não seja uma verdade absoluta que os engenheiros estão livres para ignorá-la ao criar seus projetos. Se verdades provisórias são tudo o que temos, é com base nelas que temos de agir no mundo. E nem é correto dizer que as verdades provisórias são "todas iguais", que acreditar na lei da gravitação universal é "a mesma coisa que" acreditar em duendes. Algumas verdades provisórias admitem menos dúvida razoável, fornecem mais informação boa o suficiente e, no fim, guiam ações mais responsáveis que outras.
Use a inércia e a covardia a seu favor.
Não, o fofo do vovô Hans não era um assassino sádico. O cigarro é tão gostoso, como é que pode fazer mal? Eu, parente de macacos? Como assim, botar a família na SUV a diesel e descer para a praia é colaborar com uma crise ambiental? O ser humano não gosta de ser arrancado de sua zona de conforto, e os negacionismos se alimentam disso -- muitas vezes, de fato, nascem disso. No geral, representam um esforço a fim de reunir dados e criar argumentos que façam essa abstração estatística, o cidadão médio, se sentir melhor. O negacionismo ideal é o que produz, no tal cidadão médio, a sensação de que ele sempre fez tudo certo, que, mesmo sem saber os comos e os porquês, sempre se comportou, pensou e acreditou da melhor forma possível.
Quando o negacionismo contraria algum tipo de consenso social -- como no caso do Holocausto -- seu efeito final é geralmente tranquilizador: veja, esse bicho-papão em que vocês todos acreditavam, na verdade, nunca existiu. Ufa!
Embora cada um dos negacionismos citados tenha especificidades próprias, há algumas estratégias comuns, adotadas por todos. Um livro que trata do assunto é o Merchants of Doubt. Abaixo, apresento algumas das jogadas clássicas do negacionismo:
Encontre acadêmicos que defendem o seu ponto de vista.
É só procurar. Do mesmo modo que conviver com a Hustler (e, vá lá, com a Veja) é o preço a pagar pela liberdade de imprensa, o preço da liberdade de investigação acadêmica é haver catedráticos falando bobagem: procurando bem, deve dar para achar até um astrônomo que ainda defenda que o Sol gira em torno da Terra. Claro, gente assim é minoria, e o melhor que um leigo pode fazer é se guiar pelo consenso da comunidade científica, não pela opinião de especialistas isolados, mas na hora de montar o seu documentário (ou livro, ou reportagem) você pode passar por cima desse critério que (quase) ninguém vai ligar.
Cite fatos científicos corretos, mas irrelevantes para o assunto em questão.
"A órbita da Terra não é circular, é elíptica"."Aranhas não são insetos". "O derretimento do gelo que flutua sobre o Oceano Ártico não elevará o nível dos mares". "Cidades criam ilhas de calor". Coisas assim devem ser ditas no mesmo tom em que as patricinhas de anedota dizem "Hellooooo-ôu", a insinuação sendo a de que a implicação a favor da tese negacionista é tão óbvia e fulgurante que não precisa ser explicitada, a menos que o ouvinte seja um idiota. Como ninguém gosta de passar por idiota, todo mundo balança a cabeça, espertamente, e o argumento inválido, devidamente vaselinado, desliza feliz rumo ao alvo.
Descontextualize a ciência.
Afirmações como "erupções vulcânicas injetam milhares de toneladas de CO2 na atmosfera" muitas vezes são usadas para causar um clima de impotência -- como não dá para controlar o que os vulcões fazem, para que se preocupar com as míseras emissões humanas? Para estar no contexto adequado, no entanto, essa afirmação deveria vir suplementada pelo dado de que o efeito dos vulcões no clima é, majoritariamente, de resfriamento, por conta do enxofre e de outras partículas que eles lançam na atmosfera; pelo fato de que as emissões humanas de CO2 já superam as vulcânicas; e, por fim, pela constatação do óbvio: não temos controle sobre os vulcões mas temos (algum) controle sobre nós mesmos.
Manipule desonestamente o conceito de "dúvida" científica.
Uma das coisas que tornam a ciência uma empreitada maravilhosa é sua incapacidade de reconhecer verdades absolutas. Mesmo que uma verdade absoluta seja descoberta -- um candidato razoável seria, por exemplo, a afirmação de que todos os seres vivos da Terra têm um ancestral comum -- o processo científico jamais fechará de vez a questão a respeito.
Sempre haverá a possibilidade (cada vez mais remota, mas sempre aberta) de novas evidências demonstrarem que o que parecia verdade era, de fato, apenas ilusão, ou somente uma versão grosseiramente simplificada de como as coisas realmente são. Negacionistas tentam lançar mão desse componente de dúvida estrutural que acompanha toda afirmação científica para deslegitimar diagnósticos dos quais discordam (que cigarro faz mal, que todos temos um ancestral comum, que a revolução industrial vem aquecendo a Terra, etc.).
Ao fazer isso, no entanto, eles deliberadamente passam com o trator por cima de três conceitos importantes: o de dúvida razoável, o de informação boa o suficiente e o de ação responsável. Por partes.
Embora toda dúvida seja possível, nem toda dúvida é razoável, frente às evidências disponíveis. Por exemplo, você pode duvidar que esteja lendo esta postagem -- talvez isto tudo seja um sonho especialmente tedioso -- mas, qual o motivo, a evidência, para isso?
Quanto à informação boa o suficiente: em muitos casos, até sabemos que os dados que temos não correspondem a como as coisas realmente são, mas ainda assim eles são bons o bastante para guiar certos tipos de decisão -- você não precisa de fotos de altíssima definição de uma paisagem para saber onde acaba a floresta e começa o deserto, e a Nasa se vira muito bem com as leis de Newton para navegar suas sondas, mesmo sabendo que o trabalho de Einstein é superior.
Já ação responsável é, ora bolas, ação responsável. Não é porque existe a possibilidade filosófica de que a lei da conservação da energia não seja uma verdade absoluta que os engenheiros estão livres para ignorá-la ao criar seus projetos. Se verdades provisórias são tudo o que temos, é com base nelas que temos de agir no mundo. E nem é correto dizer que as verdades provisórias são "todas iguais", que acreditar na lei da gravitação universal é "a mesma coisa que" acreditar em duendes. Algumas verdades provisórias admitem menos dúvida razoável, fornecem mais informação boa o suficiente e, no fim, guiam ações mais responsáveis que outras.
Use a inércia e a covardia a seu favor.
Não, o fofo do vovô Hans não era um assassino sádico. O cigarro é tão gostoso, como é que pode fazer mal? Eu, parente de macacos? Como assim, botar a família na SUV a diesel e descer para a praia é colaborar com uma crise ambiental? O ser humano não gosta de ser arrancado de sua zona de conforto, e os negacionismos se alimentam disso -- muitas vezes, de fato, nascem disso. No geral, representam um esforço a fim de reunir dados e criar argumentos que façam essa abstração estatística, o cidadão médio, se sentir melhor. O negacionismo ideal é o que produz, no tal cidadão médio, a sensação de que ele sempre fez tudo certo, que, mesmo sem saber os comos e os porquês, sempre se comportou, pensou e acreditou da melhor forma possível.
Quando o negacionismo contraria algum tipo de consenso social -- como no caso do Holocausto -- seu efeito final é geralmente tranquilizador: veja, esse bicho-papão em que vocês todos acreditavam, na verdade, nunca existiu. Ufa!
Uma coisa que me deixa curioso é por que diabos negacionistas climáticos estão associados com extrema direita, e por que diabos eles acham que se preocupar um pinguinho com meio ambiente é ser comunista malvado? Isso é sério, eu não consigo entender. Eu estou longe de ser um comunista, mas sempre que falo qualquer coisa relacionado com ambiente alguém vem falando "isso é papo de 'comuna' ".
ResponderExcluirAlém de alguns pontos citados pelo Eduardo acho que é porque é o 'comunista ecológico' é o contraponto óbvio do esteriótipo do 'empresário malvado capitalista'.
ExcluirDaniel, é porque milhares de ONG's estão se beneficiando da "onda" do aquecimento global e o óbvio e fazerem lobby para mantê-las. A dita direita (acho um tanto ambíguo a questão de direita e esquerda, inclusive há alguns que querem abolir esses termos) quer diminuir os financiamentos e o tamanho do estado e melhorar a liberdade dos mercados.
ResponderExcluirEu pessoalmente tenho uma dose excessiva de ceticismo sobre a questão do clima, mas lendo e assistindo alguns documentários de ambas as posições, estou pendendo mais para que o aquecimento - ou o esfriamento - da terra não é de origem antrópica. Acho que as "provas e evidências" contra a ação antrópica são mais contundentes do que as dos "aquecimentistas antrópicos". Depois então do "climagate" e da negativa de um dos papas do clima, James Lovelock, dizendo que foi equivocado ao dizer sobre o futuro do clima consegue nos nortear ainda mais.
Uma coisa é fato: existem pessoas interessadas em manter um lobby sobre o clima aquecendo para se perpetuar no poder e corporações também seus interesses.
Ei, Eduardo, um reparo: Lovelock nunca foi "papa" do clima. Eu mesmo já comentei a "retratação" dele aqui:
Excluirhttp://carlosorsi.blogspot.com.br/2012/05/lovelock-mudou-de-ideia-who-cares.html
Essas ONGs ambientalistas estão usando seus recursos ilimitados e deixando as pobres petrolíferas levar a culpa pelas mudanças climáticas. Acho que as petrolíferas deviam tentar fazer algum tipo de "vaquinha" para juntar recursos e fazer um contra-ponto à esses "verdes" milionários. Além do US$ 1 trilhão em subsídios que as petrolíferas recebem, acho que todos podemos contribuir com mais R$ 1,00 por litro de gasolina para as pobres petrolíferas possam financiar alguns estudos que façam contraponto à essa farsa! Assim poderemos queimar combustíveis fósseis a vontade e usar o dinheiro economizado em "ações sustentáveis" para acabar com a fome na África, algo que as petrolíferas sempre quiseram fazer mas são impedidas pela pressão dos ambientalistas para que elas gastem recurso reduzindo emissões, diminuindo resíduos e poluentes... onde já se viu isso?? Se preocupar com poluentes enquanto existem crianças passando fome na África?? Só esses eco-xiitas mesmo....
ExcluirExcelente textos Carlos.
ResponderExcluirSó espero que ninguém o utilize como base para criar um novo negacionismo hehehe
Carlos, quando disse sobre "papa" do clima é devido sua autoridade e um decano do ativismo ambiental. No livro dele "A vingança de Gaia", preconiza iminentes catástrofes globais devido ao aquecimento global. Por ser uma autoridade e muito conhecido pelo meio acadêmico, ele alardeou com convicção sobre as condições climáticas. O que levou por inércia a muitas pessoas adotarem medidas de "profilaxia" para evitar ainda mais a influência humana na questão do clima. Inclusive quem se beneficiou e aproveitou desse momento foi Al Gore, apoiados por membros até da ONU - dizem alguns céticos.
ResponderExcluirA própria autoridade, James Lovelock, em entrevista na matéria da revista VEJA semana passada, se retratou dizendo que suas previsões foram "tolices de minha parte" e que a partir de agora será "menos alarmista" quando falar em mudança de clima.
Eu não sou um "negacionista" convicto, estou a espera de outras evidências que corroborem de forma factual e concreta os céticos ou os aquecimentistas. Como havia dito anteriormente, é inegável que existem pessoas e corporações interessadas na questão da mudança de clima sob um prisma antrópico e, também é inegável, que caso realmente seja confirmado a questão antrópica, estão agindo de forma exacerbada e hiperbólica.
Abraços
OI, Eduardo! Uma boa fonte para dar uma olhada no contraponto aos argumentos dos negacionistas é este site aqui: http://www.skepticalscience.com/translation.php?lang=10
ExcluirO material em inglês é mais completo, mas o em português já dá uma boa ideia do estado da questão. De resto, concordo que há muita confusão, principalmente na mídia, entre o ambientalismo puramente ideológico e o baseado em ciência -- confusão que acaba operando em detrimento do segundo. Eu mesmo fico bem desconfortável quando vejo gente dizendo que "é óbvio" que transgênicos e energia nuclear deveriam ser banidos, por exemplo.
Por isso que é importante ter cuidado na hora de selecionar as fontes e sopesar argumentos. Em questões técnicas, o consenso dos especialistas acaba sendo o melhor guia (não que não erre nunca, mas tende a ser o que erra menos).
Outro dia mesmo eu estava me perguntado do porquê "teorias" conspiratórias e idéias ruins se espalhavam tão facilmente. Acho que esse guia mostra bem alguns motivos. Mas outro motivo que faz tanta gente cair na conversa de criacionistas, negacionistas da vacina e em negacionistas do clima é a sensação de estar de posse de um conhecimento secreto e especial. Isso faz com que mesmo que eles sejam expostos a evidencias contrárias eles as ignorem.
ResponderExcluirSobre o aquecimento global e o modelo heliocêntrico
ResponderExcluirhttp://teoriadetudo.blogfolha.uol.com.br/2012/06/28/sobre-o-aquecimento-global-e-o-modelo-heliocentrico/
Ok, ok, negadores. Vocês venceram... devo confessar: http://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com.br/2013/01/confissao.html
ResponderExcluir"Uma das coisas que tornaM a ciência uma empreitada maravilhosa..."
ResponderExcluirGrato!
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