Preservando a lacuna necessária

Uma queixa muito comum, na boca dos conservadores, é a que se ergue contra uma suposta "interferência indevida" do Estado na vida das pessoas -- um exemplo típico da retórica aparece neste artigo de Luiz Felipe Pondé, sobre "bullying intelectual". Ele se queixa de uma suposta judicialização da sociedade, onde conflitos e dilemas que deveriam ser resolvidos pela dinâmica própria dos indivíduos envolvidos acabam sofrendo (ou se veem sob ameaça de sofrer) a intervenção da mão pesada do Estado.

Já li artigos de "neocons" americanos queixando-se até mesmo das leis contra embriaguez ao volante, dizendo que se tratam de uma tentativa totalitária do Estado de determinar "a composição do sangue" dos indivíduos. E eu mesmo já me manifestei contra o que vejo como uma judicialização excessiva das questões de liberdade de expressão e de informação, onde parece que é cada vez mais fácil achar um juiz  que mande o adversário calar a boca do que encontrar fatos e argumentos para estabelecer a verdade.

Exageros e polêmicas à parte, no entanto, há dois temores levantados por quem vê o excesso de interferência estatal na vida particular que são bem graves: por um lado, há o temor de que um sistema excessivamente paternalista torne as pessoas incapazes de "se virar" e de lidar de forma madura com frustrações e conflitos; por outro, há o risco de que o açambarcamento das prerrogativas individuais pelo Estado leve a um totalitarismo burocrático, uma espécie de fascismo kafkiano.

Ao notarmos que esses dois efeitos deletérios tendem a se reforçar mutuamente -- pessoas menos autônomas tendem a depender cada vez mais do Estado, que assim se torna mais forte, reduzindo a autonomia das pessoas, e assim por diante -- o cenário de pesadelo está montado.

Não digo que estejamos necessariamente caminhando nessa direção, mas o cenário em si é sinistro o bastante para, no mínimo, servir como espantalho em debates públicos sobre questões que vão desde o desarmamento da população civil ao home schooling, da interferência do Ministério Público em casos de bullying e à censura judicial da imprensa, do controle do câmbio às tarifas de importação.

Uma questão pouco discutida, no entanto, é a causa do crescimento percebido das atribuições e papéis do aparato estatal. Seguindo a máxima aristotélica de que a natureza odeia o vácuo, essa expansão parece ocorrer em resposta a uma retração de outras fontes tradicionais de autoridade, como a religião e a família.

Coisas que antes não pareciam ser reguladas, porque as regras encontravam-se difusas, tão onipresentes quanto invisíveis como o ar, numa cultura largamente consensual, tendem a perder o prumo no momento em que o consenso social se desfaz ou, no mínimo, perde legitimidade como fonte de direitos e deveres. Não se trata, portanto, de um novo autoritarismo imposto pelo Estado, mas de o Estado assumindo as funções de autoritarismos outros, forçados, pelo avanço da civilização, a bater em retirada.

Forças conservadoras tendem a lamentar esse "bater em retirada" dos grandes consensos, enquanto que eu tendo a celebrar o movimento. Afinal, vivemos num mundo diverso, e prisões invisíveis não são menos prisões só por causa disso. De fato, é a desconfiança quanto aos consensos, trazida pela percepção de diversidade, que permite aos membros de cada cultura enxergar as grades da própria cela, ao realizar o esforço (nem sempre fácil) de ver o mundo pelos olhos de quem está de fora.

Mas concordo com os conservadores, quando lamentam o fato de o Estado estar recolhendo os espólios deixados pelas velhas autoridades tradicionais. Se, em alguns casos, isso pode ser benéfico e, até certo ponto, inevitável, também é preciso notar que, se a natureza odeia o vácuo, nós não somos obrigados a concordar com ela in toto. Como diz a velha piada, é preciso evitar preencher algumas lacunas que podem se mostrar realmente necessárias.

Comentários

  1. Interessante visualização do obvio e que a sociedade não enxerga.. realmente, o correto então seria os governantes interferirem menos... será que eles não se culpariam por omissão e por isso têm medo e nesse caso erram por intervenção? Pensemos nisso.. http://significado.dosnomes.nom.br

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