"Intolerância" não é isso não, é outra coisa

Em seu livro The Myth of Persecution: How Early Christians Invented a Story of Martyrdom, a historiadora Candida Moss não só desmonta a narrativa de que centenas, quiçá milhares, de cristãos foram mortos pelo Estado romano, apenas pelo fato de serem cristãos, nos 300 anos entre a crucificação de Jesus e a ascensão de Constantino -- a conta mais exata é de meia dúzia de mártires, e de um período ativo de caça aos cristãos que teria durado cerca de uma década, não séculos -- como ainda expõe o contexto histórico em que o mito do "sangue de mártires é a semente da igreja" foi construído: depois da chegada dos cristãos ao poder com Constantino, como pretexto para a perseguição a hereges e pagãos.

"A consequência da história de Eusébio de uma igreja perseguida", escreve a autora, "é a divisão da igreja em dois grupos: a ortodoxia, representada pelos bispos e mártires, e seus oponentes: hereges, cismáticos, perseguidores". Mais adiante, ela acrescenta: "Antes da ascensão do imperador Constantino, essa visão polarizada do mundo havia existido entre cristãos que se viam como forasteiros lutando contar Satanás no fim dos tempos; com Eusébio, a ideia institucionaliza-se. O 'nós' perseguidos agora somos o establishment."

Candida Moss chama a atenção para o que há de perverso nesse construto retórico, que faz com que um grupo se considere vítima de perseguição e de intolerância ao mesmo tempo em que está, de fato, no exercício do poder: a manobra ideológica permite mobilizar todos os meios de opressão massacrantes disponíveis ao establishment, ao mesmo tempo em que se invoca um grau de licença moral normalmente só concedido ao oprimido que luta, em desespero, pela própria vida. Tiranias constroem-se assim.

O livro da historiadora americana me veio à memória depois que até mesmo o arcebispo católico de de São Paulo acusou o especial de natal do grupo humorístico Porta dos Fundos de "intolerância religiosa". Outros grupos cristãos já vinham numa escala retórica contra o vídeo -- onde, entre outras coisas, o carpinteiro José reage como um típico corno de anedota ao saber da gravidez de Maria -- mas ouvir a palavra "intolerância" aplicada ao caso por um sujeito formado em filosofia e que fala latim é algo espantoso.

Ou a aura de superioridade intelectual -- especialmente em relação aos evangélicos mais estridentes -- que a hierarquia católica gosta de ostentar é puro blefe, ou uma manobra autoritária do tipo atribuído por Moss aos pais da igreja, cevados no seio da Roma Imperial, está em curso.

Só para pôr as coisas em perspectiva: "intolerância" é o que sofrem os ateus na Indonésia, os coptas no Egito, os muçulmanos em Mianmar, os católicos na China (para onde, aliás, o arcebispo poderia se transferir, caso realmente deseje lutar contra a opressão de seus irmãos de fé). Ver seus dogmas favoritos virarem alvo de piada, enquanto você continua livre para acreditar neles, praticá-los, propagá-los e, até, para fazer piada com quem fez a piada, é outra coisa: chama-se democracia.


Comentários

  1. Excelente texto!!! É isso aí!

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  2. Seguindo a lógica que você fecha seu texto, podemos concluir que fazer alguma piada sobre a prática homossexual também é democracia, certo? Bom saber!

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    1. Como se nunca tivessem feito piada com os homossexuais antes desse texto...

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    2. Certamente que sim, como o próprio Carlos argumenta aqui: http://carlosorsi.blogspot.com.br/2011/02/todo-mundo-e-contra-liberdade-de.html

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    3. Uma coisa é uma piada para rir com as pessoas, e a outra é dizer que vamos ao inferno, que somos doentes, que merecemos a morte e só fazer piada escrota que demonstra ignorância e ódio. Por outro lado, não é bem a mesma coisa: por um lado estamos falando da crença que uma pessoa tem. Por outro, o que a pessoa É! Não dá pra entender?

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  3. Fazer piada com Homossexuais não é problema alguma, eu mesmo não vejo problema sendo eu gay.
    Mas querer me impedir ou qualquer outra pessoa que é homossexual a não poder ser o que é, querendo tratar como doença ou nós fazendo ser perseguidos como pecadores ou coisas do gênero ai já não acho que seja democracia.

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  4. Anônimo que inferiu com a mesma inteligência de uma ameba que fazer chacota com a religião dominante é equivalente a fazer chacota sobre o homossexualismo, como você é burro. Deve ser evangélico, só pode. E evangélicos sempre com essa evidente incapacidade de reflexão ou crítica coerente!

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  5. "Candida Moss chama a atenção para o que há de perverso nesse construto retórico, que faz com que um grupo se considere vítima de perseguição e de intolerância ao mesmo tempo em que está, de fato, no exercício do poder: a manobra ideológica permite mobilizar todos os meios de opressão massacrantes disponíveis ao establishment, ao mesmo tempo em que se invoca um grau de licença moral normalmente só concedido ao oprimido que luta, em desespero, pela própria vida. Tiranias constroem-se assim." Qualquer semelhança com o governo do PT e qualquer outro governo de esquerda não é mera coincidência!!!

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    1. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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    2. Já estava achando estranho não ter lido nenhum comentário chamando o governo brasileiro de "tirânico". Muito previsíveis.. haha

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    3. Não entendi. Por que meu comentário foi removido? Apenas falei que governos de direita fazem a mesma coisa, ou seja, utilizam do argumento da perseguição para se fazerem de vítima.

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    4. Oi, Evandro! Desculpe, foi uma barbeiragem minha no sistema de administração de comentários -- cliquei onde não devia, e não achei como fazer "undo". Mais uma vez, desculpe. Se quiser reinserir o comentário, fique à vontade.

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  6. Eli Vieira procura qualquer pau pra dar no cristianismo. Até uma tese que é obviamente uma fraude o camarada apela.

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  7. http://novajerusalemdecristo.blogspot.com.br/

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  8. Intolerância tem sido um termo amplamente utilizado, não apenas para aqueles impedidos violentamente de exercer sua fé. Aliás, há tantos tipos de violência contra a expressão de uma fé, e tantas formas de impedimento. É a risadinha que recebemos quando portamos uma conta de candomblé, ou quando no domingo dizemos para os amigos "descolados" que vamos a missa. O autor do texto não deve chamar o bispo de São Paulo de ignorante porque ele utilizou o termo intolerância religiosa para este caso, quando estamos utilizando amplamente o termo para pequenos preconceitos diários, vividos pelas minorias e também pelos cristãos. Antes de proferir um comentário tão cheio de raiva, sugiro ao autor ler alguns textos e reflexões deste bispo. Vamos ser intelectualmente honestos e, principalmente, responsáveis. Estou certa que antes de disseminar Brasil afora a sua opinião, você não procurou estudar a vida e obra deste bispo. Certamente fez muito mais pelo bem de outros do que você. Insisto, seja responsável, pesquise e leia as reflexões filosoficas e teoricas antes de uma pessoa antes de difamá-la por um simples comentário.

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    1. 1) Uma "risadinha que recebemos" é violência e intolerância ? Menos, anônimo, menos...

      2) A vida e a obra do bispo, por melhores que sejam, não transformam erros em acertos nem acertos em erros, e, portanto, não vem ao caso quando se analisa um fato específico.

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  9. Texto excelente, acho que somos livres para acreditar no que quisermos ou não, e não vejo nada de mais em fazer piada com religiao, homossexuais, negros, gordos, afinal não é de hoje que isso vem sendo feito. Lembro-me bem de tempos atrás, onde as piadas se restringiam a escolas e grupos de amigos, ninguém se importava, e agora com a explosão da internet, porque as pessoas se incomodam tanto? Que saco.

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  10. Orsi: o que vc conta que acontece com a física quântica acontece também com a historiografia sobre a União Soviética. A maior parte do que é publicado é propaganda, clichê e anticomunismo. Abs do Lúcio Jr.

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  11. no caso o pior não é brincar com religiao ,e simo que deve ser proibido é brincar com Deus .qualquer pessoa que realmente acredita em Deus, deve ou deveria se incomodar! o problema é que o Sr.Gregório Duvivier é Ateu então não respeita, o pior é ver cristão(católico/ protestante) apoiando e rindo.

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  12. Se uma piada com a fé de um grupo é passível de punição, então piadas com opiniões/ideologias também o são. Se não posso brincar com o cristianismo, logo também não posso brincar com o socialismo e/ou liberalismo, pois isso seria falta de respeito com a "crença" dos socialistas/capitalistas. Aliás, não poderia fazer piada com políticos, pois estaria desrespeitando aqueles que votaram nele.

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