Ciência e sociedade, duas vezes
Muita gente, e muita gente inteligente, desconfia dos apelos à ciência e à matemática no debate de problemas sociais: nos primórdios de minha carreira jornalística, tive um editor -- excelente jornalista, diga-se -- que não hesitava em igualar o uso de números à mera picaretagem: "estatística é o que diz que o pobre e o rico jantaram, em média, meio banquete cada", dizia. Acusações genéricas de "cientificismo" são hoje menos frequentes do que já foram, mas ainda dão o ar de sua graça.
Numa população com um nível educacional tão baixo e tão pouco afeita a mexer com números (para felicidade dos bancos e das lojas que vendem a prazo), essa atitude ressabiada tem lá sua razão de ser, mas se levada ao extremo, pode causar danos irreparáveis. A melhor resposta que já encontrei está no livro Naked Statistics, do economista Charles Wheelan, que cita o matemático sueco Andrejs Dunkels: "é fácil mentir com estatísticas, mas é difícil contar a verdade sem elas".
Escrevo tudo isso porque, nesta semana, a pedido do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, investiguei o que a ciência tem a dizer sobre duas questões que, por motivos diferentes, "viralizaram" neste cantinho brasileiro das redes sociais: as preferências das crianças quanto a brinquedos e as terapias de "reorientação" sexual, ou "cura gay".
Sobre a primeira questão, há alguma evidência de que meninos e meninas têm preferências inatas diversas (garotos preferem coisas de jogar, bater e empurrar; garotas, coisas de pegar, segurar e abraçar), mas o modo como essas diferenças são exploradas e magnificadas pela indústria, pela cultura e pelo comércio tem muito mais a ver com marketing e estereotipagem social do que com a "natureza".
Sobre a segunda: essas coisas não funcionam e são perigosas. O único psiquiatra com currículo científico respeitável que, neste século, chegou a afirmar que seria possível alterar a orientação sexual de alguém acabou retratando-se e pedindo desculpas.
Uma coisa que a ciência não pode fazer é ditar os objetivos e metas de uma sociedade. Mas, uma vez que esses objetivos tenham sido escolhidos, ela pode apontar as melhores formas de atingi-los, dentro de um determinado quadro ético de referência. A ciência não vai converter uma sociedade cruel numa sociedade gentil; ela pode, até, ensinar essa sociedade a exercer sua crueldade com máxima eficiência. Mas uma sociedade que se pretende gentil também não pode prescindir dela.
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