O detox do detox
Estamos na chamada "silly season", a "temporada tonta", em que a mídia, por falta de gente (muitos jornalistas de férias), de assunto (recesso parlamentar, pré-temporada esportiva) e atenção (leitores/espectadores na praia) começa a gastar páginas inteiras com bobagens, fazendo hora até o ano começar de verdade. É nesta época que afloram com maior intensidade as longas entrevistas com subcelebridades e videntes, as retrospectivas, os avistamentos de óvni e, claro, as chamadas "dietas detox".
Não há nada errado em achar que tomar um copo de couve batida com espinafre e óleo de peixe vai aliviar a angústia existencial deixada pela comilança das últimas duas semanas, mas se você acredita que, além da purificação espiritual trazida pela penitência, esse procedimento vai causar alguma purificação física, removendo toxinas de seu corpo... sinto muito, mas não. Mesmo.
O corpo humano é, no geral, bem capaz de desintoxicar-se sozinho: os rins e o fígado fazem o grosso desse trabalho. Se não dão conta, outras reações, mais extremas, ocorrem -- é por isso que gente que bebe demais vomita: eis um detox 100% natural! Se nem isso bastar, no entanto, a intoxicação é de um tipo que nenhum pacote de farmácia de manipulação ou suco verde de lanchonete natureba vai consertar: você precisa ir ao hospital.
"Tratamentos de desintoxicação são procedimentos médicos que não se escolhem casualmente de um menu de tratamentos alternativos", advertia, lá em 2014, o blog Science-Based Medicine. "Desintoxicação real acontece em hospitais, em circunstâncias de risco de vida", geralmente envolvendo excesso de álcool, drogas ou venenos, como metais pesados. "Mas aí há as 'toxinas' que os praticantes de medicina alternativa alegam eliminar. Essa forma de desintoxicação é apenas a cooptação de um termo real para dar legitimidade a produtos e serviços inúteis".
O médico e pesquisador alemão Edzard Ernst, autor de livros críticos sobre tratamentos alternativos em geral (e homeopatia, em particular) aponta que, "na medicina alternativa", detox passou a significar "o uso de terapias alternativas para eliminar 'toxinas' do corpo de uma pessoa saudável que, supostamente, está sendo envenenada pelos subprodutos do próprio metabolismo, por toxinas do meio ambiente ou (mais importante), pelo abuso de um estilo de vida pouco saudável (por exemplo, com excessos de álcool, comida ou tabaco)".
Ernst conclui que, dada a incapacidade dos proponentes do "detox" em responder a algumas perguntas simples -- por exemplo, quais são as toxinas? qual a evidência de que prejudicam a saúde? como podem ser quantificadas? como se diagnosticam pacientes que precisam de detox? quais tratamentos são melhores para quias toxinas? -- os procedimentos de detox "são pouco plausíveis e carecem de comprovação clínica. Devemos avisar nossos pacientes para que os evitem".
Em 2015, foi feita uma revisão dos estudos acerca da viabilidade de procedimentos "detox" para perda de peso e "eliminação de toxinas". "A presente revisão examina se as dietas detox são necessárias, o que envolvem, se funcionam", escrevem os autores. "Embora a indústria detox esteja bombando, há muito pouca evidência clínica em apoio a elas". Os poucos estudos com resultados favoráveis "são prejudicados por falhas metodológicas e amostras pequenas".
Além de inúteis, procedimentos de "detox" podem ser perigosos. Em 2016, foi publicado o relato do caso de uma mulher de 47 anos que deu entrada na UTI com convulsões depois de se submeter a um regime de alto consumo de líquidos e remédios fitoterapêuticos no período das festas de ano novo.
Lá em cima escrevi sobre purificação espiritual, e não foi por acaso: o paralelo entre o "detox" da medicina alternativa (e das lanchonetes vegetarianas, e das casas de sucos naturais) e os antigos ritos religiosos de limpeza e purificação já foi notado por mais de um comentarista. Superstição e pensamento mágico são guiados por algumas "leis" intuitivas. Uma delas é a lei do contágio: o contato com o impuro deixa uma nódoa, que precisa ser eliminada por meio de algum ritual.
Os conceitos de "puro" e "impuro", por sua vez, são maleáveis e dependem largamente da cultura -- basta ver a lista, do nosso ponto de vista atual absurda e arbitrária, quando não cômica, de coisas "imundas" que aparece no Velho Testamento, por exemplo.
No mundo contemporâneo, onde o secularismo e o misticismo fast-food da sensibilidade New Age se misturam, esse espaço da supersticioso da dinâmica impuro-purificação acaba ocupado pela dupla toxina-detox. Para quem sente a necessidade de um rito de limpeza da alma antes de encarar o ano novo, eu sugeriria deixar o kit detox de lado e tentar algo como um longo banho de banheira, uma caminhada no parque ou qualquer outra atividade silenciosa que produza uma sensação moderada de conforto físico e relaxamento. Como diz o cartum que abre esta postagem, a única toxina que o detox elimina chama-se dinheiro.
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