Fobia de vacina: o que é importante saber

Algumas das maiores conquistas da espécie humana, como a erradicação da varíola, a virtual erradicação da pólio e o fato de a esmagadora maioria das crianças que vão à escola hoje não terem coleguinhas que ficaram cegos por terem contraído sarampo são fruto direto das campanhas de vacinação em massa.

Além de imunizar o indivíduo vacinado, a vacinação em larga escala produz ainda um efeito conhecido como "imunização de manada", no qual mesmo pessoas que não tenham recebido a vacina se beneficiam, ao viver em comunidades onde os membros vacinados operam como "escudos", efetivamente criando um cordão de isolamento que a doença não consegue atravessar.

Esse efeito, no entanto, vem se diluindo. São cada vez mais comuns informes vindos de países como EUA ou Canadá em que bebês -- ainda jovens demais para terem sido vacinados -- sucumbem a doenças de que a atual geração de médicos só ouvir falar nos livros de história, basicamente porque seus vizinhos recusaram-se a vacinar os filhos.

O Brasil corre risco semelhante. Confesso que poucas coisas fazem meu sangue ferver mais depressa do que ouvir uma jovem profissional arrojada, de classe média alta e cheia de pretensões intelectuais sentenciar, com o mesmo ar fashion de savoir-faire de quem anuncia que não é mais obrigatório combinar a cor do cinto com a dos sapatos, que não vê a necessidade de vacinar os filhos. Me parece que uma pessoa que escolheu a responsabilidade de gestar, parir e criar uma criança e que dispõe de todos os meios financeiros e educacionais para tal tem a porra da obrigação de se informar direito!


Óquei. Desculpe. Vou lá tomar uma água e já volto.

Onde eu estava? Ah, sim. A oposição à vacina é quase tão antiga quanto o procedimento em si. As causas são várias -- alguns antropólogos referem-se à rejeição da imunização como uma "questão substituta", onde o protesto contra a vacina simboliza um protesto contra alguma outra coisa, como o autoritarismo do governo, a arrogância dos cientistas, o modo de vida ocidental, etc. -- mas geralmente envolvem dois fatores primordiais: a incompetência das autoridades em se comunicar de modo claro, respeitoso e transparente com o público e a irresponsabilidade da mídia e dos formadores de opinião.

A onda mais recente do fenômeno, e que parece ser a que alimenta o antivacinismo fashion brasileiro da atualidade, começou entre 1998 e 1999, na Inglaterra e nos EUA. A princípio dois casos totalmente isolados entre si, ambos se fundiram no início deste século numa onda conjunta de desinformação pop. Mas vamos por partes.

O ano de 1998 marcou a publicação, na revista Lancet, de um artigo assinado, entre outros, pelo gastroenterologista Andrew Wakefield. O trabalho apresentava a hipótese de que uma vacina tríplice -- para sarampo, caxumba e rubéola -- poderia causar irritação intestinal em algumas crianças, e que essa irritação poderia levar ao autismo. Se a ligação entre vacina, dor de barriga, diarreia e autismo lhe parece meio nonsense, é porque é, mesmo.

A Lancet retratou-se do artigo no ano passado, o que, oficialmente, significa que os editores da revista concordam que ele nunca deveria ter sido publicado. Mesmo em 1998, eles provavelmente já desconfiavam disso: a peça não só saiu com um cabeçalho de advertência, deixando claro que se tratava de um resultado preliminar, como a mesma edição trouxe  um comentário escrito por dois especialistas que basicamente apontava diversas falhas e inconsistências nos resultados de Wakefield.

A revista até mesmo absteve-se de enviar um representante à entrevista coletiva marcada pelo médico para anunciar a publicação, e na comunidade científica rapidamente emergiu o consenso de que a peça representava o pior trabalho já publicado na história de mais de 170 anos do augusto periódico. Entre as fraquezas do estudo estava o fato de que ele se baseava em 8 -- oito -- casos, apenas.

Por fim, o texto publicado na Lancet reconhece que nenhuma ligação entre vacina e autismo havia de fato sido comprovada, mas Wakefield disse à imprensa (na coletiva da qual o corpo editorial da revista preferiu não participar) que era preciso suspender as vacinações com urgência.

Diversos problemas éticos foram descobertos mais tarde na realização do estudo, o que levou Wakefield a ser declarado "desonesto" e "irresponsável" pelas autoridades médicas britânicas. Recentemente, o British Medical Journal (BMJ) deu início à publicação de uma série de artigos sobre os bastidores da "pesquisa", incluindo o fato de que Wakefield estava trabalhando para um advogado que procurava um pretexto para processar fabricantes de vacina e pedir gordas indenizações.

Cientificamente falando: na década que se seguiu à publicação de 1998, os resultados do artigo original não foram confirmados. No Japão, país que suspendeu o uso da vacina tríplice acusada por Wakefield, o número de diagnósticos de autismo não caiu.

Timerosal

Ainda comigo? Bem, agora chegamos a 1999 e ao timerosal, o "conservante de mercúrio" usado em algumas vacinas, e ao pânico nos Estados Unidos.

O timerosal é usado como conservante em vacinas desde a década de 30, sem produzir quaisquer efeitos tóxicos conhecidos. A forma de mercúrio que o timerosal contém é o etil-mercúrio, sendo que a molécula orgânica tóxica que contém o mesmo metal é o metil-mercúrio. A diferença de uma letra pode não parecer muito, mas quimicamente é a mesma que existe entre etanol (o álcool do vinho e da cerveja) e o metanol (um álcool radicalmente venenoso).

Na década de 90, quando os efeitos tóxicos do metil-mercúrio já estavam mais do que claros, autoridades sanitárias de diversas partes do mundo decidiram, por via das dúvidas, retirar o timerosal das vacinas. O temor era de que, dado o grande número de imunizações recomendado para as crianças, o acúmulo de etil-mercúrio no corpo acabasse atingindo um nível tóxico.

(Não havia nenhum estudo comprovando que pudesse existir um nível perigoso de exposição a timerosal, mas também não havia nenhum estudo comprovando que tal nível não pudesse existir.)

Problema: quando o governo americano emitiu um comunicado à imprensa informando a substituição do timerosal e dando a justificativa de que o objetivo era tornar "as vacinas que já são seguras ainda mais seguras", o público logo ficou desconfiado. Estimulados por buscas online que revelavam o caráter tóxico do mercúrio -- e que se esquivavam de sutilezas como a distinção entre  "etil" e "metil" -- e organizados também via internet, pais de crianças autistas logo lançaram um movimento para provar que o mercúrio nas vacinas causava autismo.

Diferentemente do elo proposto por Wakefield, entre a vacina de sarampo e a doença, a especulação sobre a ligação entre timerosal e autismo sequer chegou a ser publicada numa revista científica respeitável. Pressionado por políticos e grupos de pais, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA realizou várias pesquisas sobre o assunto, todas com resultado negativo.

Um estudo específico comparou a taxa de autismo na Dinamarca antes e depois de o país banir o timerosal -- o que aconteceu em 1992 -- e determinou que ela continuou a crescer ao longo de toda a década de 90.

E por fim...

Claro, nada do que foi escrito acima garante que vacinas sejam 100% seguras. Nada é 100% seguro. O timerosal só começou a ser usado como conservante depois que um lote de vacinas foi contaminado por uma bactéria e matou diversas crianças, nas primeiras décadas do século passado; e quando os EUA realizaram sua primeira campanha de vacinação contra a pólio, nos anos 50, erros de controle de qualidade fizeram com que um lote de vacinas, fabricado na Califórnia, acabasse causando paralisia infantil em  algumas crianças, em vez de evitar a doença.

Numa nota mais pessoal, em anos recentes minha mulher teve reações desagradáveis às vacinas de rubéola e gripe, e passou alguns dias com pintinhas na pele e um certo desconforto.

Nada disso, no entanto, muda o fato de que a varíola desapareceu da face da Terra, e de que a pólio também já teria sumido, se a vacinação na Nigéria, há alguns anos, não tivesse sido sabotada por clérigos islâmicos que denunciaram a imunização como parte de uma conspiração para esterilizar meninas muçulmanas.

O ser humano é sabidamente ruim para avaliar riscos. Temos mais medo de andar de avião do que de atravessar a rua, embora anualmente morram muito mais pedestres atropelados do que passageiros de aeronaves. Da mesma forma, o risco de uma reação adversa grave a uma vacina é muito menor que o risco oferecido pela doença contra a qual a vacina protege. É importante ter isso em mente.

E antes que eu me esqueça: muitas das informações desta postagem vieram do livro abaixo, uma leitura que recomendo fortemente:


Comentários

  1. Analfabetismo científico + religião = merda.

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  2. Eu nem sabia que estava rolando uma onda de fobia antivacina no Brasil de 2011, mas seu artigo é um ótimo antídoto. Vou divulgar.

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  3. Não sei de dá para classificar de "onda", mas no Brasil a classe A é a que menos vacina os filhos (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100219/not_imp513245,0.php). A mim me parece com a velha síndrome de caboclos querendo ser ingleses, como sempre assimilando o que os ingleses têm de pior...

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  4. Eu sabia que já havia ouvido falar em timerosal: é o nosso Merthiolate, que minha mãe aplicou inúmeras vezes em meus joelhos eternamente machucados pelas molecagens, sem consequências, exceto porque ardiam muito.

    Lá em casa somos 100% vacinados. É uma loucura, por exemplo, deixar de imunizar-se contra o tétano. Quem está imune a um acidente com um prego ou vidro contaminados?

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