A Natividade, uma obra de ficção



Aqui no prédio em que vivo há um morador profundamente cristão, que adora adornar o quadro de avisos do elevador social com mensagens edificantes sobre "nós, cristãos" ou sobre como podemos "praticar melhor o nosso cristianismo". Aproveitando o impulso do artigo de ontem de Daniel Sottomaior na Folha, fiquei imaginando como seria colocar, no mesmo quadro, uma pensata sobre o quanto é deselegante e presunçosa essa premissa de que todos os moradores do prédio são cristãos e, portanto, têm algum interesse nesse tipo de baboseira.

Ou apenas rabiscar, "Nós quem, cara-pálida?"

Mas, em nome da paz dos condomínios, me contenho, me contenho.

De qualquer modo: o cartaz mais recente é sobre o que o presépio revela sobre, adivinhe só, o melhor modo de viver uma vida cristã e, claro, prestar o devido respeito à figura de Jesus.

Pessoalmente, considero presépios criações bem interessantes. Não sei o bastante sobre história da arte para afirmar algo, mas talvez sejam os ancestrais mais remotos dos dioramas; e, claro, há variações extremamente criativas, indo do origami às apresentações com autômatos. Como todo motivo mitológico, se prestam a infinitas recriações e reinterpretações. Lembro-me de que no apartamento de meu avô materno havia um feito com peças de madeira entalhada, incluindo um burrico, uma vaquinha e os Três Reis Magos.

O que só pouca gente talvez saiba é que essa representação, que leva os Três Reis à manjedoura, está simplesmente errada.

Explicando, com informações que aparecem no meu Livro dos Milagres:

Dos quatro Evangelhos canônicos, apenas dois – Mateus e Lucas – tratam do nascimento de Jesus, e o fazem com narrativas totalmente incompatíveis. De fato, um Evangelho muito literalmente desmente o outro, nesse aspecto. Em Mateus, Jesus nasce na casa de José, na cidade de Belém. Algum tempo depois, a Sagrada Família recebe a visita dos Reis Magos, que vinham seguindo a tal da Estrela de Belém.

Já de acordo com o autor de Lucas, a família era de Nazaré, mas Maria, ainda grávida, teve de acompanhar o marido a Belém, para que José respondesse a um censo ordenado pelos romanos. De acordo com esse evangelista, por algum motivo Roma queria contar os judeus não onde cada um deles vivia e trabalhava – o propósito básico de um censo –, mas a cidade onde seus ancestrais haviam vivido séculos antes.

(O censo descrito no texto de Lucas é problemático também por outros motivos. Um deles, o fato de que, na época do nascimento de Jesus, a Galileia, região onde fica a cidade de Nazaré, era um protetorado, e não uma província, de Roma. O suposto decreto de César simplesmente não se aplicaria lá.)

Enfim, chegando a Belém, o Sagrado Casal não encontra lugar para se hospedar e vai passar a noite num estábulo, onde Jesus nasce. Mais tarde, mãe, pai e filho retornam para a carpintaria de José em Nazaré.

Repare que nessa versão não há estrela de Belém, nem Reis Magos.

Essa distinção entre as narrativas é, de fato, tão sobejamente desconhecida, que quando o Vaticano resolveu fazer um presépio à la Mateus -- o cenário sendo uma casa, não num estábulo -- a coisa virou notícia no mundo inteiro.

Tudo isso pode ser visto como mera implicância minha; olhaí o ateu pernóstico, reclamando de picuinhas. Afinal, um presépio que junte os reis e a estrela à manjedoura simplesmente reúne o que há de mais dramático e poético nas duas versões, meio que como os filmes do Christopher Nolan reúnem o que há de mais interessante nas várias versões do Batman.

A diferença, se é que preciso explicar, está em que, pelo menos no caso do Batman, todos reconhecem as histórias como peças de ficção.

Comentários

  1. Benedito Aparecido bertolino9 de dezembro de 2011 às 10:36

    Sabe brother? Nosso magnifico universo, crenças e culturas, levou milhões de anos pra serem formados, vc não vai e jamais consiguira, explicar em pouco tempo a historia humana a alguem, lembre-se:- O sábio não diz tudo que sabe,o tolo não sabe nada do que diz, Mas que esse cara irrita, irrita!

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  2. o final me fez lembrar uma máxima que um amigo meu sempre repete:

    "se a bíblia prova a existência de jesus, os quadrinhos provam a existência do super homem."

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  3. Orsi e leitores do blog: pra quem não viu, recomendo o programa que Richard Dawkins fez para BBC, "The Root Of All Evil".
    Em 2 partes e legendado em:
    http://www.megaupload.com/?d=XM3PID9C

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  4. Migão, uma sonda acabou de deixar o sistema solar....ela tem 33 anos, ou seja a idade de Cristo, isso não te revela nada?!

    Tchelo de Poço Fundo-Mg

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  5. Ainda sobre a sonda, que negócio é esse que a sonda esta "deixando uma região protegida por partículas do sol ficando exposta a radiação do espaço exterior"?
    Vento solar sopra de maneira errática?

    Dá uma luz pra gente aí!

    Tehelo de Poço fundo-mg

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  6. Ela está passando por uma área onde a pressão do vento solar já não é capaz de manter os "ventos" do resto da galáxia afastados...

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  7. Oxa, precisava dizer de maneira erratica então?!?!?!?

    E a radiação do espaço exterior? Quando dizem que protegem é no sentido de barreira ou que "fariam algum mal" caso não fossemos protegidos, tal qual uma camada de ozônio por exemplo?
    Essa radiação faz mal ou não?

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  8. Olha, se faz mal, é a Voyager que vai descobrir!

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  9. fiquei surpreso ao ver que de tantas coisas que você realmente poderia falar contra a comemoração do natal (por exemplo: a data de 25/Dez, a origem pagã, quando foi instituída e por quem, como os cristãos da época reagiram, o motivo da criação desta comemoração, etc), você preferiu atacar a bíblia.
    na verdade não fiquei tão surpreso.
    ver uma pessoa tão inteligente e esclarecida como você falar sobre diversos temas com um domínio "matemático" de tudo, e por fim distorcer e manipular dados complementando-os com falácias quando fala da bíblia apenas reforça a idéia de que o ateísmo tem suas doutrinas, e portanto não é diferente de outras religiões com seus dogmas.
    pensei em esclarecer em detalhes os pontos levantados, mas vou apenas resumir, apenas para não parecer uma resposta evasiva.
    assim como é o propósito dos 4 evangelhos paralelos, os relatos envolvendo o nascimento de Yeshua (achei que você preferiria assim) são complementares.
    até um analfabeto funcional é capaz de perceber que Mateus não disse que Jesus nasceu na casa de José. o relato de Mateus enfatiza a história de que José se divorciou de Maria (pois eram noivos) quando soube que ela estava grávida, mas depois de um anjo ter aparecido para ele e explicado que Maria estava grávida por uma intervenção de YHWH, então ele a recebeu de volta para sua casa e por fim menciona que eles não mantiveram relações sexuais até que Maria tivesse o filho. é claro que este versículo abrange cerca de 6 a 8 meses e muita coisa aconteceu neste período que Mateus não escreveu.
    já Lucas descreveu os acontecimentos quando ela estava em "estado avançado de gravidez".
    enquanto Mateus enfatizou o cumprimento de Isaías 7:14, Lucas enfatizou o cumprimento de Miquéias 5:2.
    sobre o objetivo do censo ou como os judeus receberam a ordem do imperador (se deveriam ou não obedecer, e quais as possíveis consequências), suas observações são simples conjecturas.
    e se o imperador não quisesse gastar verba deslocando funcionários para todos os cantos para onde os judeus se espalharam? e se o objetivo do censo era justamente saber para onde estavam se espalhando e se multiplicando?
    e por fim comparar toda a obra da bíblia com a uma história em quadrinhos apenas solidifica minha opinião em relação à sua postura.

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  10. Eu não lerei os comentários. Eu não lerei os comentários. Eu não lerei os com...

    D'oh!

    ResponderExcluir
  11. "Analfabeto funcional"? Poxa, Anônimo, não diga uma coisa dessas... Vamos ver Mateus em um pouco mais de detalhes, então:

    1. O trecho sobre os magos diz que eles entraram na "casa" onde a criança estava (não estábulo);

    2. Mais adiante, ao falar da fuga para o Egito (evento a respeito do qual, aliás, Lucas é omisso) Mateus afirma que José decidiu estabelecer residência em Nazaré para escapar de Herodes Aquelau, que passara a governar a Judeia enquanto a família sagrada se encontrava no exílio, na época. Isso deixa claro que José não era, originalmente, morador da Galileia quando de seu casamento.

    Resumindo, para Lucas, a família de José era de Nazaré e teve de emigrar para Belém para o censo; já em Mateus, a família era da Judeia (região que inclui Belém) mas optou por exilar-se em Nazaré.

    Claro, sempre é possível usar a imaginação para reconciliar as narrativas, mas só se você estiver previamente convencido de que elas têm de ser reconciliadas. Uma leitura desapaixonada sugere apenas que se trata de duas histórias ficcionais, talvez vagamente baseadas em algum acontecimento real, mas mesmo isso é disputável.

    Abs,

    Carlos

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  12. primeiro que fique claro que não chamei a ninguém de analfabeto funcional. disse que quando uma pessoa inteligente distorce um texto de uma forma de que nem um analfabeto funcional o faria por incapacidade, isso demonstraria motivações não científicas.
    ao ler o relato de Mateus, fica claro que ele descreveu um episódio que ocorreu no início da gravidez, e terminou dizendo que José a levou para casa. Lucas descreveu o episódio no final da gravidez, quando houve o nascimento em um estábulo. como você pode dizer que estes dois relatos se contradizem? "se Mateus disse que José levou Maria para casa e Lucas disse que 7 meses depois a criança nasceu em um estábulo isso demonstra que os dois relatos são contraditórios". desculpe, mas isso de você?

    1. os magos entraram na casa. isto significa apenas que quando chegaram eles não estavam mais no estábulo. simples assim. Você se apegou a isso?

    2. o fato de que José, ao voltar do Egito, foi para a Nazaré ao invés de Belém, demonstra que ele não vivia em Nazaré antes? De novo, são dois relatos complementares. uma leitura mais atenta demonstra isso. não é preciso ficar argumentando

    sim, é sempre possível usar a imaginação para fazer o contrário também, se você estiver previamente convencido disso.

    sei lá, para ajudar a esclarecer esta questão, tente um experimento científico: descreva seu ponto de vista sobre o dia do seu casamento e peça para sua esposa fazer o mesmo. Garanto que a omissão de detalhes em ambos os lados não provará de forma nenhuma que não houve casamento. Ainda mais se você pedir para que mais alguns amigos participem descrevendo este dia. se você juntar as histórias, poderá montar um quadro mais rico.

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  13. Contexto, Anônimo, contexto. Mateus 2:22-23

    "Quando ele (José) ouviu que Aquelau reinava sobre a Judeia no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir lá. E depois de ser avisado num sonho, foi para o distrito da Galileia/Lá estabeleceu seu lar numa cidade chamada Nazaré..."

    Não é um salto de lógica muito grande deduzir que

    (1) se o impulso inicial de José era radicar-se na Judeia, e que foi o medo que o levou à Galileia, isso significa que, para o autor de Mateus, ele era originalmente da Judeia?

    (2) Se ele estabeleceu seu lar em Nazaré, é porque provavelmente, na visão de Mateus, não tinha um lar ali antes? "Estabelecer", afinal, é diferente de "voltar para".

    Acrescento apenas que a visão das narrativas de natividade como ficções mutuamente incompatíveis não é uma implicância pessoal minha, e sim um reflexo do consenso dos historiadores que se debruçaram sobre a questão. Há uma reportagem interessante aqui:

    http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1009720,00.html

    E boas referências na Wikipedia:

    http://en.wikipedia.org/wiki/Nativity_of_Jesus#Critical_analysis

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