A(s) história(s) Rei Davi
Parece que vem aí uma minissérie nacional sobre a figura bíblica de Davi, rei que sucedeu a Saul no trono de Israel, de acordo com o relato do Velho Testamento. Saul, para quem não sabe, perdeu o favor de YHWH para seguir à frente do povo eleito por se recusar a perpetrar um genocídio contra os amalequitas. Pois o Senhor lhe ordenara:
Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. (1 Samuel 15:3)
Mas o rei malandrão, em vez de seguir o mandamento à risca, optou por:
E Saul e o povo pouparam a Agague, e ao melhor das ovelhas e das vacas, e as da segunda ordem, e aos cordeiros e ao melhor que havia, e não os quiseram destruir totalmente; porém a toda a coisa vil e desprezível destruíram totalmente. (1 Samuel 15:9)
O que acabou levando YHWH a mandar o profeta Samuel buscar um novo rei para substituir o monarca desobediente, busca que culminou em Davi.
A escolha dessa figura como protagonista de teledramaturgia não é má: já li comentaristas que consideram que a narrativa sobre Davi, na Bíblia (principalmente o relato de sua vida e de seus feitos na corte, já como rei, em 2 Samuel e 1 Reis), é a precursora de um gênero literário, o do "romance histórico": uma versão ficcionalizada da história, que usa um período idealizado do passado como pano de fundo para as aventuras imaginárias de personagens históricos e fictícios.
Do que pouca gente se dá conta, no entanto, é que o relato costurado no primeiro livro de Samuel sobre as origens do futuro rei (a chamada "história da ascensão de Davi") é formado por versões contraditórias.
Como explico melhor no meu Livro dos Milagres, a Bíblia em geral, e o Velho Testamento, em particular, é uma colcha de retalhos de emendas, interpolações, contradições e anacronismos -- a ponto de o estudioso Randel Helms, por exemplo, referir-se ao livro como um "campo de batalha", onde diferentes autores interferem nos textos uns dos outros, sem escrúpulos.
Vejamos: na primeira vez em que Davi aparece, ele é um menino, um mero pastor de ovelhas:
Disse mais Samuel a Jessé: Acabaram-se os moços? E disse: Ainda falta o menor, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, porquanto não nos assentaremos até que ele venha aqui. (1 Samuel 16:11)
Na menção seguinte, porém, ele já parece ser um adulto (ou ao menos um jovem bem desenvolvido), com boa reputação como músico e soldado:
Então respondeu um dos moços, e disse: Eis que tenho visto a um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é valente e vigoroso, e homem de guerra, e prudente em palavras, e de gentil presença; o SENHOR é com ele. (1 Samuel 16:18)
De fato, Davi chega a ser feito escudeiro do rei:
Assim Davi veio a Saul, e esteve perante ele, e o amou muito, e foi seu pajem de armas. (1 Samuel 16:21)
Mas no capítulo seguinte, Davi inexplicavelmente reverte ao papel de menino pastor de ovelhas, jovem demais para ser um guerreiro:
E Davi era filho de um homem efrateu, de Belém de Judá, cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; e nos dias de Saul era este homem já velho e adiantado em idade entre os homens.
Foram-se os três filhos mais velhos de Jessé, e seguiram a Saul à guerra; e eram os nomes de seus três filhos, que se foram à guerra, Eliabe, o primogênito, e o segundo Abinadabe, e o terceiro Sama.
E Davi era o menor; e os três maiores seguiram a Saul.
Davi, porém, ia e voltava de Saul, para apascentar as ovelhas de seu pai em Belém.
(1 Samuel 17:12-15)
As duas versões voltam a se cruzar na história da morte do gigante Golias. Inicialmente, depois de Golias ameaçar o exército de Saul, Davi se mantém no papel de menino, interrogando o irmão sobre o bully filisteu. Ao que o irmão responde, acusando Davi de ser um pirralho metido:
E, ouvindo Eliabe, seu irmão mais velho, falar àqueles homens, acendeu-se a ira de Eliabe contra Davi, e disse: Por que desceste aqui? Com quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção, e a maldade do teu coração, que desceste para ver a peleja. (1 Samuel 17:28)
Em seguida, ele volta a ser o "valente homem de guerra" e escudeiro do rei (o versículo 15, citado acima, dá a entender que ele se dividia entre as duas tarefas, a de pastor pobre das ovelhas do velho pai e a de escudeiro e seresteiro particular do monarca na corte. A plausibilidade desse tipo de acumulação de tarefas, deixo ao julgamento do leitor):
E Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá, e pelejará contra este filisteu. (1 Samuel 17:32)
Em seguida, Saul empresta a Davi a própria armadura. Da qual, no entanto, o jovem se despe, por não estar acostumado com ela e considerá-la pesada (retornando ao papel de pastor imberbe) e, com a funda em mãos, vai fazer o que todo mundo já o viu fazer no cinema e na TV, abatendo o gigante.
Enquanto Davi caminhava para dar cabo de Golias, no entanto, Saul foi acometido por amnésia:
Vendo, porém, Saul, sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o capitão do exército: De quem é filho este moço, Abner? E disse Abner: Vive a tua alma, ó rei, que o não sei.
Disse então o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este moço.
Voltando, pois, Davi de ferir o filisteu, Abner o tomou consigo, e o trouxe à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu.
E disse-lhe Saul: De quem és filho, jovem? E disse Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita.
(1 Samuel 17:55-58)
Isso, a despeito de Davi ter sido apresentado a Saul como filho de Jessé e, mais ainda, estar dividindo seus dias entre a corte e os rebanhos do pai já há algum tempo. E note que o rei não se refere a Davi pelo nome, mas como "jovem". Apagou-se toda a convivência pregressa entre ambos?
O que parece ter havido foi uma tentativa de amarrar duas tradições a respeito da entrada de Davi no círculo íntimo do rei que ele está destinado a substituir -- uma na qual ele chega à corte já com a reputação de intrépido guerreiro estabelecida, antes de matar Golias, e outra na qual ele é um menino pastor que só chama a atenção do rei Saul depois de derrubar o gigante.
A própria autoria da morte de Golias está envolta em contradições. Pois, mais adiante, já depois da morte de Saul e com Davi à frente das tropas de Israel, lemos:
Houve mais outra peleja contra os filisteus em Gobe; e El-Hanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu Golias, o giteu, de cuja lança era a haste como órgão de tecelão. (2 Samuel 21:19)
A comparação da lança com uma "haste de tecelão" mostra que esse Golias é um homem descomunal. Aqui, novamente, há um cruzamento de tradições: em uma delas, a morte do gigante Golias foi causada por Davi, enquanto Saul ainda vivia; em outra, por El-Hanã, quando Saul já estava morto. É bem possível que a tradição mais antiga seja a de El-Hanã, e que o feito tenha sido retroativamente atribuído a Davi para embelezar sua biografia -- e pelo fato de que El-Hanã também era um belemita, assim como o novo rei. Em vez de ter dois heróis nascidos na mesma cidade, a narrativa fica mais "limpa" se tivermos um só.
Falando em limpeza, houve uma tentativa posterior de "limpar" a contradição de Samuel quanto à morte de Golias:
E tornou a haver guerra com os filisteus; e El-Hanã, filho de Jair, feriu a Lami, irmão de Golias, o giteu, cuja haste da lança era como órgão de tecelão. (1 Crônicas 20:5)
Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. (1 Samuel 15:3)
Mas o rei malandrão, em vez de seguir o mandamento à risca, optou por:
E Saul e o povo pouparam a Agague, e ao melhor das ovelhas e das vacas, e as da segunda ordem, e aos cordeiros e ao melhor que havia, e não os quiseram destruir totalmente; porém a toda a coisa vil e desprezível destruíram totalmente. (1 Samuel 15:9)
O que acabou levando YHWH a mandar o profeta Samuel buscar um novo rei para substituir o monarca desobediente, busca que culminou em Davi.
A escolha dessa figura como protagonista de teledramaturgia não é má: já li comentaristas que consideram que a narrativa sobre Davi, na Bíblia (principalmente o relato de sua vida e de seus feitos na corte, já como rei, em 2 Samuel e 1 Reis), é a precursora de um gênero literário, o do "romance histórico": uma versão ficcionalizada da história, que usa um período idealizado do passado como pano de fundo para as aventuras imaginárias de personagens históricos e fictícios.
Do que pouca gente se dá conta, no entanto, é que o relato costurado no primeiro livro de Samuel sobre as origens do futuro rei (a chamada "história da ascensão de Davi") é formado por versões contraditórias.
Como explico melhor no meu Livro dos Milagres, a Bíblia em geral, e o Velho Testamento, em particular, é uma colcha de retalhos de emendas, interpolações, contradições e anacronismos -- a ponto de o estudioso Randel Helms, por exemplo, referir-se ao livro como um "campo de batalha", onde diferentes autores interferem nos textos uns dos outros, sem escrúpulos.
Vejamos: na primeira vez em que Davi aparece, ele é um menino, um mero pastor de ovelhas:
Disse mais Samuel a Jessé: Acabaram-se os moços? E disse: Ainda falta o menor, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, porquanto não nos assentaremos até que ele venha aqui. (1 Samuel 16:11)
Na menção seguinte, porém, ele já parece ser um adulto (ou ao menos um jovem bem desenvolvido), com boa reputação como músico e soldado:
Então respondeu um dos moços, e disse: Eis que tenho visto a um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar e é valente e vigoroso, e homem de guerra, e prudente em palavras, e de gentil presença; o SENHOR é com ele. (1 Samuel 16:18)
De fato, Davi chega a ser feito escudeiro do rei:
Assim Davi veio a Saul, e esteve perante ele, e o amou muito, e foi seu pajem de armas. (1 Samuel 16:21)
Mas no capítulo seguinte, Davi inexplicavelmente reverte ao papel de menino pastor de ovelhas, jovem demais para ser um guerreiro:
E Davi era filho de um homem efrateu, de Belém de Judá, cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; e nos dias de Saul era este homem já velho e adiantado em idade entre os homens.
Foram-se os três filhos mais velhos de Jessé, e seguiram a Saul à guerra; e eram os nomes de seus três filhos, que se foram à guerra, Eliabe, o primogênito, e o segundo Abinadabe, e o terceiro Sama.
E Davi era o menor; e os três maiores seguiram a Saul.
Davi, porém, ia e voltava de Saul, para apascentar as ovelhas de seu pai em Belém.
(1 Samuel 17:12-15)
As duas versões voltam a se cruzar na história da morte do gigante Golias. Inicialmente, depois de Golias ameaçar o exército de Saul, Davi se mantém no papel de menino, interrogando o irmão sobre o bully filisteu. Ao que o irmão responde, acusando Davi de ser um pirralho metido:
E, ouvindo Eliabe, seu irmão mais velho, falar àqueles homens, acendeu-se a ira de Eliabe contra Davi, e disse: Por que desceste aqui? Com quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Bem conheço a tua presunção, e a maldade do teu coração, que desceste para ver a peleja. (1 Samuel 17:28)
Em seguida, ele volta a ser o "valente homem de guerra" e escudeiro do rei (o versículo 15, citado acima, dá a entender que ele se dividia entre as duas tarefas, a de pastor pobre das ovelhas do velho pai e a de escudeiro e seresteiro particular do monarca na corte. A plausibilidade desse tipo de acumulação de tarefas, deixo ao julgamento do leitor):
E Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá, e pelejará contra este filisteu. (1 Samuel 17:32)
Em seguida, Saul empresta a Davi a própria armadura. Da qual, no entanto, o jovem se despe, por não estar acostumado com ela e considerá-la pesada (retornando ao papel de pastor imberbe) e, com a funda em mãos, vai fazer o que todo mundo já o viu fazer no cinema e na TV, abatendo o gigante.
Enquanto Davi caminhava para dar cabo de Golias, no entanto, Saul foi acometido por amnésia:
Vendo, porém, Saul, sair Davi a encontrar-se com o filisteu, disse a Abner, o capitão do exército: De quem é filho este moço, Abner? E disse Abner: Vive a tua alma, ó rei, que o não sei.
Disse então o rei: Pergunta, pois, de quem é filho este moço.
Voltando, pois, Davi de ferir o filisteu, Abner o tomou consigo, e o trouxe à presença de Saul, trazendo ele na mão a cabeça do filisteu.
E disse-lhe Saul: De quem és filho, jovem? E disse Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita.
(1 Samuel 17:55-58)
Isso, a despeito de Davi ter sido apresentado a Saul como filho de Jessé e, mais ainda, estar dividindo seus dias entre a corte e os rebanhos do pai já há algum tempo. E note que o rei não se refere a Davi pelo nome, mas como "jovem". Apagou-se toda a convivência pregressa entre ambos?
O que parece ter havido foi uma tentativa de amarrar duas tradições a respeito da entrada de Davi no círculo íntimo do rei que ele está destinado a substituir -- uma na qual ele chega à corte já com a reputação de intrépido guerreiro estabelecida, antes de matar Golias, e outra na qual ele é um menino pastor que só chama a atenção do rei Saul depois de derrubar o gigante.
A própria autoria da morte de Golias está envolta em contradições. Pois, mais adiante, já depois da morte de Saul e com Davi à frente das tropas de Israel, lemos:
Houve mais outra peleja contra os filisteus em Gobe; e El-Hanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita, feriu Golias, o giteu, de cuja lança era a haste como órgão de tecelão. (2 Samuel 21:19)
A comparação da lança com uma "haste de tecelão" mostra que esse Golias é um homem descomunal. Aqui, novamente, há um cruzamento de tradições: em uma delas, a morte do gigante Golias foi causada por Davi, enquanto Saul ainda vivia; em outra, por El-Hanã, quando Saul já estava morto. É bem possível que a tradição mais antiga seja a de El-Hanã, e que o feito tenha sido retroativamente atribuído a Davi para embelezar sua biografia -- e pelo fato de que El-Hanã também era um belemita, assim como o novo rei. Em vez de ter dois heróis nascidos na mesma cidade, a narrativa fica mais "limpa" se tivermos um só.
Falando em limpeza, houve uma tentativa posterior de "limpar" a contradição de Samuel quanto à morte de Golias:
E tornou a haver guerra com os filisteus; e El-Hanã, filho de Jair, feriu a Lami, irmão de Golias, o giteu, cuja haste da lança era como órgão de tecelão. (1 Crônicas 20:5)
Aaaahhh, então não era mais o cara. Mas o irmão. Só que 1 Crônicas é uma obra muito posterior a 1 e 2 Samuel, e fica difícil entender como um autor, escrevendo tanto tempo mais tarde, poderia estar tão melhor informado. De qualquer modo, a "correção" é uma tábua de salvação um tanto quanto incômoda para os inerrantistas, já que sugere que alguns versos da Bíblia podem mesmo conter informação incorreta.
Quanto à historicidade da figura de Davi -- existiu mesmo? foi mesmo rei? fundou mesmo uma dinastia? -- o júri de historiadores e arqueólogos ainda não chegou a um consenso. O arqueólogo Israel Finkelstein sugere que o Davi bíblico é baseado num líder de um bando de mercenários e bandidos que teria tomado a cidade de Jerusalém, talvez não muito diferente dos "senhores da guerra" que ainda hoje infestam o Oriente Médio e a Ásia Ocidental.
Quanto à historicidade da figura de Davi -- existiu mesmo? foi mesmo rei? fundou mesmo uma dinastia? -- o júri de historiadores e arqueólogos ainda não chegou a um consenso. O arqueólogo Israel Finkelstein sugere que o Davi bíblico é baseado num líder de um bando de mercenários e bandidos que teria tomado a cidade de Jerusalém, talvez não muito diferente dos "senhores da guerra" que ainda hoje infestam o Oriente Médio e a Ásia Ocidental.
Um ótimo texto cara, você conseguiu ser bem objetivo e não fugir do combinado na introdução dele. Um abraço, meus parabéns.
ResponderExcluirO Livro de Jó também tem uma curiosa história de edição posterior, com no mínimo dois autores interferindo na história, e mais tarde provavelmente ainda um terceiro, que mudou o final para a versão mais positiva (ao que parece, originalmente Jó de dava mal e morria, apenas).
ResponderExcluirSim, os dois livros "ateus" da Bíblia -- Jó, com seu Deus cruel e mesquinho, e Eclesiastes, com sua celebração da vida em si e dos prazeres da vida, sem frescuras religiosas, sofreram intervenções "sanitárias" ao longo das eras. Mas a Bíblia inteira é um amontoado de autores distorcendo ou renegando o escrito dos outros...
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