Meu problema com a Campanha da Fraternidade
Eu não ia escrever nada a respeito, juro, mas depois desta entrevista do arcebispo Scherer publicada na Folha de hoje e, numa provocação transversal, das declarações do principal líder católico britânico reproduzidas no Telegraph, sou obrigado a manifestar meu temor, minha apreensão, meu senso geral de mau agouro -- a síntese de terror, repugnância e angústia que os anglófonos chamam de dread -- diante do tema da Campanha da Fraternidade da CNBB deste ano, “Fraternidade e Saúde Pública”, com o mote “Que a saúde se difunda sobre a terra”.
Minha intenção era não escrever nada a respeito porque, ora bolas, quem pode ser contra uma campanha pelo aperfeiçoamento da saúde pública? Críticas construtivas ao sistema são sempre bem-vindas, e dada a capacidade de mobilização que a Igreja Católica ainda tem -- conseguiram até cavar o entrevistão de segunda da FSP, certo? --, a impressão geral é a de que uma força poderosa se pôs a serviço de uma causa nobre. Então, reclamar, quem há-de?
O problema é que impressões gerais nem sempre dão conta de toda a complexidade da situação, e se há um fato histórico bem atestado na trajetória do Ocidente é o de que a Santa Madre não dá ponto sem nó. A Igreja tem uma visão de mundo, e a missão expressa de impô-la ao, oras, mundo: se não se vale mais de ferros em brasa e de exércitos de fanáticos armados para salvar-nos mesmo que contra nossa vontade, é apenas porque a estratégia se revelou contraproducente no longo prazo, foi um desastre de relações públicas e, por último mas não menos importante, o orçamento anda apertado.
É necessário destacar que parte significativa dessa visão vaticana de mundo está em conflito aberto com os fatos mais comezinhos a respeito do que deve ser uma boa política de saúde pública. Basta lembrar, por exemplo, a condenação dos métodos contraceptivos, a oposição intolerante à realização de abortos (até mesmo para preservar a vida da gestante) e, claro, a odiosa ficção homicida de que preservativos são inúteis no combate às DSTs em geral, e à aids em particular.
Uma recepção simpática e acrítica, pela mídia e pela sociedade em geral, da nova Campanha da Fraternidade tem uma boa chance de fazer com que uma organização que acha que camisinhas são inúteis passe a ser levada a sério -- legitime-se -- como interlocutora nos debates sobre saúde pública. Isso seria o equivalente intelectual de dar à Sociedade da Terra Plana direito a voto nas assembleias da União Astronômica Internacional.
Os riscos desse tipo de legitimação (se eu fosse um pouco mais cínico, diria que conquistar legitimidade é o verdadeiro objetivo por trás da campanha) são, como diria Tom Clancy, reais e imediatos: em 2008, o mui católico prefeito de Jundaí (SP), Ary Fossen, sancionou, sob pressão do bispo local, uma lei inconstitucional proibindo um tipo de contraceptivo. E o pouco de legitimidade que o Vaticano já obteve na ONU bastou para fazer degringolar duas importantes conferências internacionais da década retrasada, a de direitos reprodutivos no Cairo e a dos direitos da mulher de Pequim, como bem lembra o jurista britânico Geoffrey Robertson em seu devastador indiciamento de Bento XVI, The Case of the Pope: Vatican Accountability for Human Rights Abuse.
Aqui, imagino, cabe uma distinção entre os fiéis católicos, os leigos católicos, os não-praticantes que, por razões afetivas ou culturais se declaram católicos, e a hierarquia eclesiástica.
Creio que é enorme a probabilidade de que os leigos engajados na Campanha da Fraternidade deste ano façam-no movidos por um senso próprio de cidadania, sem nenhum tipo de vinculação com agendas políticas obscurantistas e anti-humanistas. Mas boas intenções não mudam em nada o fato de que tudo de bom que vier desta campanha poderá ser usado como capital político para a promoção dessas agendas. Daí minha trepidação de mau-agouro. Ainda mais, valham-me Mitra e Esculápio, em pleno ano eleitoral.
Vade retro!
Minha intenção era não escrever nada a respeito porque, ora bolas, quem pode ser contra uma campanha pelo aperfeiçoamento da saúde pública? Críticas construtivas ao sistema são sempre bem-vindas, e dada a capacidade de mobilização que a Igreja Católica ainda tem -- conseguiram até cavar o entrevistão de segunda da FSP, certo? --, a impressão geral é a de que uma força poderosa se pôs a serviço de uma causa nobre. Então, reclamar, quem há-de?
O problema é que impressões gerais nem sempre dão conta de toda a complexidade da situação, e se há um fato histórico bem atestado na trajetória do Ocidente é o de que a Santa Madre não dá ponto sem nó. A Igreja tem uma visão de mundo, e a missão expressa de impô-la ao, oras, mundo: se não se vale mais de ferros em brasa e de exércitos de fanáticos armados para salvar-nos mesmo que contra nossa vontade, é apenas porque a estratégia se revelou contraproducente no longo prazo, foi um desastre de relações públicas e, por último mas não menos importante, o orçamento anda apertado.
É necessário destacar que parte significativa dessa visão vaticana de mundo está em conflito aberto com os fatos mais comezinhos a respeito do que deve ser uma boa política de saúde pública. Basta lembrar, por exemplo, a condenação dos métodos contraceptivos, a oposição intolerante à realização de abortos (até mesmo para preservar a vida da gestante) e, claro, a odiosa ficção homicida de que preservativos são inúteis no combate às DSTs em geral, e à aids em particular.
Uma recepção simpática e acrítica, pela mídia e pela sociedade em geral, da nova Campanha da Fraternidade tem uma boa chance de fazer com que uma organização que acha que camisinhas são inúteis passe a ser levada a sério -- legitime-se -- como interlocutora nos debates sobre saúde pública. Isso seria o equivalente intelectual de dar à Sociedade da Terra Plana direito a voto nas assembleias da União Astronômica Internacional.
Os riscos desse tipo de legitimação (se eu fosse um pouco mais cínico, diria que conquistar legitimidade é o verdadeiro objetivo por trás da campanha) são, como diria Tom Clancy, reais e imediatos: em 2008, o mui católico prefeito de Jundaí (SP), Ary Fossen, sancionou, sob pressão do bispo local, uma lei inconstitucional proibindo um tipo de contraceptivo. E o pouco de legitimidade que o Vaticano já obteve na ONU bastou para fazer degringolar duas importantes conferências internacionais da década retrasada, a de direitos reprodutivos no Cairo e a dos direitos da mulher de Pequim, como bem lembra o jurista britânico Geoffrey Robertson em seu devastador indiciamento de Bento XVI, The Case of the Pope: Vatican Accountability for Human Rights Abuse.
Aqui, imagino, cabe uma distinção entre os fiéis católicos, os leigos católicos, os não-praticantes que, por razões afetivas ou culturais se declaram católicos, e a hierarquia eclesiástica.
Creio que é enorme a probabilidade de que os leigos engajados na Campanha da Fraternidade deste ano façam-no movidos por um senso próprio de cidadania, sem nenhum tipo de vinculação com agendas políticas obscurantistas e anti-humanistas. Mas boas intenções não mudam em nada o fato de que tudo de bom que vier desta campanha poderá ser usado como capital político para a promoção dessas agendas. Daí minha trepidação de mau-agouro. Ainda mais, valham-me Mitra e Esculápio, em pleno ano eleitoral.
Vade retro!
Orsi,
ResponderExcluirLendo seu texto, fica irresistível contar a piada abaixo. Mas se você não autorizar a publicação eu entenderei!
"Se a pílula do dia seguinte já é considerada um aborto, conclui-se, no âmbito jurídico, que masturbação é um homicídio premeditado, sexo oral é canibalismo, coito interrompido é abandono de incapaz, sexo com camisinha é homicídio por asfixia e sexo anal é mandar o filho à merda..."
Abraços,
João