Possessão espiritual reconhecida pela OMS? Jura?

Estou começando a fazer pesquisa para um livro sobre as tentativas feitas por vários cientistas (incluindo alguns ganhadores do Nobel), ao longo da história, mas principalmente a partir do século 19, para tentar provar a existência de espíritos -- não no sentido metafórico ou poético, mas espíritos, mesmo, seres feitos de alguma coisa que não matéria (ou de um tipo especial de matéria) e que, entre outras funções, seriam a verdadeira essência a animar o corpo humano.

Há muita coisa interessante nessa seara (tentativas de pesar a alma, de registrá-la numa câmara de nuvem, universidades disputando na Justiça a dotação deixada por um milionário para estudos sobre a imortalidade do espírito...), e estou, compreensivelmente, com o radar ligado para o assunto: há poucos dias terminei de ler um calhamaço de um teólogo inglês sobre experiências de quase-morte -- aquele negócio de túneis, luz, Jesus e os amigos mortos na outra ponta, etc., etc.

Por conta disso, fiquei intrigado quando Eli Vieira chamou a atenção de algumas pessoas no Twitter para o fato de que anda circulando um boato de que a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua versão mais recente, reconhece "obsessão espiritual" como doença real, e que portanto o paradigma materialista da medicina está à beira da derrocada, e a ciência já começa a aceitar o papel das influências espirituais na saúde humana.

A versão mais recente da história tem poucos dias e apareceu no Facebook, mas uma busca rápida no Google mostra que a excitação toda vem, pelo menos, desde maio de 2011.

Bem sei que a OMS não é de todo imune a pressões políticas (a organização até hoje usa uma linguagem altamente diplomática para dizer que homeopatia é bobagem, por exemplo), mas até isso me pareceu um pouco demais. Mas como o boato dava a referência exata do CID -- item F44.3 -- e o livro está disponível online, fui conferir. E, bem: não são só os políticos que estão dispostos a torturar os fatos até que eles se encaixem em suas versões preferidas. Vejamos.

O item F44.3 é, na verdade, um sub-item de F44, "Distúrbios dissociativos", que por sua vez faz parte da seção F00 a F99, que ostenta o título sugestivo de "Distúrbios mentais e do comportamento". A definição dos distúrbios reunidos na rubrica F44 diz:

"Presume-se que sejam psicogênicos em origem, estando estreitamente associados, no tempo, a eventos traumáticos, problemas insolúveis ou intoleráveis, ou relacionamentos perturbados. os sintomas frequentemente representam a concepção do paciente de como uma doença física deveria se manifestar [grifo meu] (...) Além disso, há evidência de que a perda de função é uma expressão de conflitos e necessidades emocionais."

Tudo, como bem se vê, firmemente dentro do tal paradigma materialista. Traumas, conflitos, necessidades emocionais. Como já disse Sherlock Holmes, no ghosts need apply.

Mas, e o item em si? Tá, de fato, o título do F44.3 é -- rufem os tambores -- "distúrbios de transe e possessão". Definidos como:

"Distúrbios em que há uma temporária perda do senso de personalidade individual e consciência plena do ambiente. Incluídos aqui estão apenas os estados de transe que são involuntários ou indesejados, ocorrendo fora de situações aceitas pela religião ou pela cultura." [grifo meu, de novo.]

E, bem, não só não há nenhuma menção a demônios ou fantasmas na definição dada, como o problema é mencionado como possível sintoma de esquizofrenia, consumo de substância psicoativa e distúrbios psicóticos. A única ligação com qualquer coisa remotamente "espiritual" -- no sentido forte, de dualismo corpo-espírito -- de toda a história é o uso da palavra "possessão" na definição do item.

Mas dizer que isso configura uma aceitação do "paradigma espiritual" pela OMS faz tanto sentido quanto dizer que a presença da categoria A30 (lepra) representa uma aceitação da realidade da maldição divina e da necessidade de se mandar bodes expiatórios para morrer no deserto.

De fato, embora a definição de "transe e possessão" no item F44.3 exclua distúrbios causados por drogas, outro trecho do CID, F10.0, menciona que "estados de transe e possessão" como possíveis consequências de dez tipos de intoxicação: por  álcool, opioides, canabinoides, sedativos/hipnóticos, cocaína, estimulantes, alucinógenos, tabaco, solventes e combinação de substâncias. De acordo com a OMS, portanto, o que pode entrar no corpo para causar a "possessão", quando alguma coisa entra, é um complexo de moléculas psicoativas; certamente, não um espírito.

Comentários

  1. Bem, é um espírito no sentido de que os anglófonos chamam de spirits às bebidas alcoólicas destiladas (e no Brasil é sinônimo de cachaça).

    []s,

    Roberto Takata

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  2. EU já tive um debate exaustivo sobre esse trecho da CID 10. Minha argumentação à época foi simples, e a repito aqui.

    Realmente não se trata de reconhecimento da OMS à existência de espíritos ou demônios ou orixás ou coisa parecida tomando conta de nossas pobres mentes. Analisemos o trecho destacado do item F44.3:

    "Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito."

    Na minha interpretação (que admito, pode estar equivocada) o que a OMS propõe com essa exclusão é que situações admitidas religiosa ou culturalmente, por exemplo, a suposta incorporação de um orixá por um pai-de-santo ou de um espírito por um médium não devem ser consideradas como disturbios de saúde mental.

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    1. Sim, exatamente. Há um conceito mais amplo, principalmente envolvendo saúde mental, de que se o "problema" é aceito voluntariamente e não atrapalha a qualidade de vida do portador, nem ameaça as pessoas ao redor, então não é um problema.

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  3. Realmente, se não constasse a palavra "possessão" para introduzir o item, acho que não haveria este alvoroço todo. Mas não tem jeito... religiosos e místicos sempre encontrarão argumentos (até nos meios seculares) para legitimar suas crenças

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  4. Nesse Caso, como são doenças descrita na OMS, portanto, doença reconhecida, temos que por, que a maconha, grande persecusora de acometer o individuo viciado a esquizofrenia, comprovado cientificamente, está tendo sua liberalidade posta ao povo brasileiro como se fosse um bem ao país.

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  5. É infelizmente a maioria das pessoas têm a mente fechada, porém a boca aberta demais. Qual o significado de possessão? Porque falar-se de espíritos é algo tão indigesto para muitos cientistas, profissionais da saúde...? Existe verdade absoluta?
    Porque tanta divergência entre cientistas? Eu não tenho respostas, mas não me limito a nada, abrangendo o que é POSSESSÃO no meu ponto de vista inclui sim influências de espíritos propriamente dito...

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    1. Simples, Anônimo: estamos falando de coisas diferentes, por isso a divergência. Os profissionais da saúde estão falando de Medicina (matéria à qual o CID 10 está relacionado) e você está falando de doutrina. Água e óleo.

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    2. OK,todos falam que não existe espíritos, eu também não posso afirmar que creio plenamente que existam. Mas aí penso em Deus, e fico perguntando: - Quem é Deus? Se devemos acreditar só no que vemos, então Deus não será um espírito? Ou é pura imaginação de todos que tem fé? Quem puder me responder, fique a vontade

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  6. O último parágrafo do autor está em *contradição com relação a publicação do CID:

    ""F44.3 Estados de transe e de possessão

    Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito.

    Exclui:

    *esquizofrenia (F20.-)
    *intoxicação por uma substância psicoativa (F10-F19 com quarto caractere comum .0)
    *síndrome pós-traumática (F07.2)

    *transtorno(s):
    -orgânico da personalidade (F07.0)
    -psicóticos agudos e transitórios (F23.-)""

    VIde http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/f40_f48.htm

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    1. Oi, Eduardo! É que existe um outro diagnóstico específico, "estados de transe e possessão na intoxicação por substância psicoativa", aqui: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/f10_f19.htm . De qualquer forma reformular o parágrafo pode ser uma boa ideia... obrigado!

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  7. Olá, Carlos.
    Os médiuns espíritas não são doentes, pois não perdem a consciência quando influenciados por espíritos. É muito raro um médium que perca sua consciência; nós os chamamos de médiuns extáticos;na praticamente não existem mais.
    Os casos de possessão , presentes em alguns artigos da Revista Espírita não apresentam somente a perda de consciência, apresentam outros aspectos como "anulação do peso do corpo/gravidade". São fatos narrados, porém , não se fecha a questão sobre seus estudos. Hoje em dia, não vemos mais estes fenômenos para poder estudá-los.
    A questão do CID 10 - lida por pessoas simples faz com que muitos entusiastas da doutrina, sem estudo suficiente - digam que a possessão por espíritos ou os espíritos estão reconhecidos pela medicina.
    Mas, como vc disse, estamos falando de coisas diferentes. é importante que se divulgue a explicação correta.
    E, os médiuns sérios, não fazem demonstrações, mas permitem o estudo de seus fenômenos por cientistas interessados, afinal a ciência é o conhecimento humano, positivo, e que nos ajuda a ter uma vida melhor.

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  8. Pessoal, não percam seu tempo não.
    Imbuídos do mais puro espírito (ops!) científico, simplesmente abram o Livro dos Espíritos de Alan Kardec e leiam.
    O cara já fez todas essas indagações e reflexões colocadas aqui, lá no século XIX.
    Fica aqui a minha instigação científica a vocês.
    Divirtam-se.
    Em tempo: espiritismo não é religião, tá ?
    Um abraço.

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  9. Ah...esqueci de mais uma coisinha:

    Pesquisem o trabalho do neuropsiquiatra Sérgio Felipe de Oliveira, mestrado em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor da Clínica Pineal Mind de São Paulo.
    Um abraço.

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  10. Posso estar enganado, mas entendi diferente. Entendi que deve haver cuidado no diagnóstico do paciente pois pode ser "possessão" que neste caso É considerada doença (A F44 3 - Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente) pois ocorre "involuntariamente" FORA de um contexto cultural ou espiritual. Quando ocorre quer voluntaria ou involuntariamente mas DENTRO de um contexto cultural ou religioso , então NÃO é considerado doença. Por isso "excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito. " Sds

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  11. Consultem Dr Sergio Felipe de Oliveira, da USP sobre o assunto e sim possessão não apenas existe em religiões desde que o mundo é mundo como além dela. Ponto final. Materialistas sempre arrumarão desculpas, fatos são fatos e pessoal da USP estudando o tema entre outros, portanto, ciência também. No mais é ponto de vista , ainda bem q a ciência vai além do materialismo que só nega e se mantem estático nesta posição, sem NADA ACRESCENTAR DE ÚTIL.

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  12. Sou terapeuta, e acho interessante os Ateus e céticos, questionam tudo, mas não propõem nada... Tudo é atribuído ao acaso. DEUS não é um espírito,pois se admitirmos sua existência como espirito, a razão nos levará crer que também somos espíritos, e isso aumentará nossas responsabilidades. Então preferem pensar que tudo é obra do acaso. Mas são forçados a admitir que esse "acaso" é a inteligência que rege todas as coisas do universo... Enquanto isso os obsediados continuem a se entupir de psicotrópicos e internações em manicômios!

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