Morreu Harry Harrison, que trouxe o ateísmo para a (minha) ficção científica
Se você não é um entusiasta da ficção científica, você provavelmente nunca ouviu falar em Harry Harrison, cuja morte, aos 87 anos, foi anunciada hoje. O que só prova como não ser um entusiasta da ficção científica limita o horizonte cultural das pessoas. Escritor, ilustrador, editor, Harrison deixou marcas indeléveis no que poderíamos chamar de cultura pop ocidental.
Suas séries de aventuras espaciais Stainless Steel Rat, sobre um anti-herói carismático, amoral e absurdamente competente em tudo o que faz, e Deathworld, a respeito de um planeta cuja ecologia faz todo o possível para eliminar a população humana, provavelmente serviram de inspiração -- não-creditada -- para mais histórias em quadrinhos, episódios de seriados de TV e filmes de ação do que seria possível contar.
O próprio Harrison trabalhou com quadrinhos, tendo sido roteirista da tira de Flash Gordon durante muitos anos, e desenhou histórias de ficção científica para mítica editora EC Comics, cuja -- por assim dizer -- ousadia editorial geralmente recebe o crédito por ter desencadeado a onda de censura aos quadrinhos que tomou conta dos EUA em meados do século passado.
Ele também escreveu o hilariante romance Bill, Herói Galáctico, tirando onda com a ficção científica militarista que surgia nos EUA em apoio à Guerra do Vietnã, e o livro Make Room! Make Room!, sobre superpopulação e colapso ecológico, que depois foi adaptado para o cinema com Charlton Heston no papel principal. O filme, no Brasil, recebeu o título de No Mundo de 2020.
Isto tudo já conta como um currículo respeitável, mas provavelmente cada uma dessas realizações será muito bem celebrada alhures. O que eu gostaria de celebrar, muito especificamente, é um conto que Harrison escreveu em 1961 e que acabou sendo publicado originalmente na Inglaterra -- o autor é americano -- porque não encontrava mercado que o aceitasse nos EUA.
Intitulado The Streets of Ashkelon, o conto é especialmente notável, para além de suas qualidades literárias (o final da história é daqueles que ficam na mente do leitor por muito tempo depois de o livro ter sido fechado), pelo fato de seu protagonista, o herói da narrativa, ser um ateu.
O conto trata do conflito entre o herói, um comerciante ateu que mantém contato com uma raça de alienígenas ingênuos, e um missionário cristão que se dispõe a catequizar esses mesmos alienígenas.
Não vou entrar em detalhes, aqui, para não privar ninguém do prazer de ter um primeiro contato direto com a história, mas adianto que o missionário, no caso, não é um televangelista disposto a tirar o couro dos ETs ou escravizá-los, mas um homem sinceramente preocupado com a salvação de suas almas. Essa visão caridosa do antagonista torna o conto ainda mais poderoso, e dá uma complexidade especial ao conflito ideológico entre os dois personagens humanos.
Não sei se essa foi a primeira história de ficção científica publicada no mercado anglo-americano a mostrar um ateu como herói e, ao mesmo tempo, a mostrar o ateísmo em si sob uma luz positiva, mas é possivelmente a mais famosa.
Da obra de Harrison, é a mais republicada -- com mais de 30 edições, em 14 línguas. Outra denúncia tão poderosa do teísmo, sob a forma de ficção científica, só apareceria 20 anos depois, no conto The Pope of the Chimps, de Robert Silverberg, em que uma tentativa de explicar religião a um grupo de chimpanzés, usando linguagem de sinais, produz resultados inesperados.
Para mim, como escritor, The Streets of Ashkelon foi uma revelação. Até encontrar essa história, toda a ficção científica que conhecia ou tratava a religião com reverência (fosse uma reverência fria e distante ou a reverência do proselitismo), ou não tratava dela de modo algum. Mesmo obras antirreligiosas, como A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells, só se revelavam assim sob cuidadosa exegese. Ashkelon mudou tudo.
Adendo: No Google+, o Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa me chamou atenção para um romance de HG Wells, The Shape of Things to Come, em que um ditador "progressista" elimina o Islã e o Cristianismo, na base da porrada. O que só reforça o caráter autobiográfico desta postagem (eu havia lido A Ilha... antes de Ashkelon, mas não Shape of...), e justifica a inclusão, tardia, do "minha" no título.
Sem o conto de Harrison, é provável que meu romance Guerra Justa, ou mesmo os contos que escrevi para as antologias Fantasias Urbanas e, principalmente, para Brinquedos Mortais, não existissem.
Então, esta noite vou, com toda a gratidão, abrir meu volume de The Best of Harry Harrison e pensar sobre o poder da literatura -- sobre como um conto a respeito de um herói ateu, escrito por um americano e publicado na Inglaterra, foi capaz de afetar a vida e a obra de um escritor de outro país e de outra língua, que só iria nascer 10 anos depois de a história ser impressa.
As pessoas que falarem sobre Harry Harrison, nos próximos dias, provavelmente falarão de como Bill, Herói Galáctico é divertido, ou de como Make Room! Make Room! é profético. The Streets of Ashkelon talvez nem seja mencionado, em parte por ser um conto, em parte por ser (ainda hoje) tão subversivo.
Mas é preciso que Harry Harrison seja lembrado, não apenas como o criador de fantásticas aventuras cômicas ou profeta do caos ambiental, mas também como o homem que finalmente quebrou o tabu da religião numa vertente da ficção científica -- a gestada a partir dos "pulps" americanos -- que sempre se orgulhou de não respeitar tabu algum.
Suas séries de aventuras espaciais Stainless Steel Rat, sobre um anti-herói carismático, amoral e absurdamente competente em tudo o que faz, e Deathworld, a respeito de um planeta cuja ecologia faz todo o possível para eliminar a população humana, provavelmente serviram de inspiração -- não-creditada -- para mais histórias em quadrinhos, episódios de seriados de TV e filmes de ação do que seria possível contar.
O próprio Harrison trabalhou com quadrinhos, tendo sido roteirista da tira de Flash Gordon durante muitos anos, e desenhou histórias de ficção científica para mítica editora EC Comics, cuja -- por assim dizer -- ousadia editorial geralmente recebe o crédito por ter desencadeado a onda de censura aos quadrinhos que tomou conta dos EUA em meados do século passado.
Ele também escreveu o hilariante romance Bill, Herói Galáctico, tirando onda com a ficção científica militarista que surgia nos EUA em apoio à Guerra do Vietnã, e o livro Make Room! Make Room!, sobre superpopulação e colapso ecológico, que depois foi adaptado para o cinema com Charlton Heston no papel principal. O filme, no Brasil, recebeu o título de No Mundo de 2020.
Isto tudo já conta como um currículo respeitável, mas provavelmente cada uma dessas realizações será muito bem celebrada alhures. O que eu gostaria de celebrar, muito especificamente, é um conto que Harrison escreveu em 1961 e que acabou sendo publicado originalmente na Inglaterra -- o autor é americano -- porque não encontrava mercado que o aceitasse nos EUA.
Intitulado The Streets of Ashkelon, o conto é especialmente notável, para além de suas qualidades literárias (o final da história é daqueles que ficam na mente do leitor por muito tempo depois de o livro ter sido fechado), pelo fato de seu protagonista, o herói da narrativa, ser um ateu.
O conto trata do conflito entre o herói, um comerciante ateu que mantém contato com uma raça de alienígenas ingênuos, e um missionário cristão que se dispõe a catequizar esses mesmos alienígenas.
Não vou entrar em detalhes, aqui, para não privar ninguém do prazer de ter um primeiro contato direto com a história, mas adianto que o missionário, no caso, não é um televangelista disposto a tirar o couro dos ETs ou escravizá-los, mas um homem sinceramente preocupado com a salvação de suas almas. Essa visão caridosa do antagonista torna o conto ainda mais poderoso, e dá uma complexidade especial ao conflito ideológico entre os dois personagens humanos.
Não sei se essa foi a primeira história de ficção científica publicada no mercado anglo-americano a mostrar um ateu como herói e, ao mesmo tempo, a mostrar o ateísmo em si sob uma luz positiva, mas é possivelmente a mais famosa.
Da obra de Harrison, é a mais republicada -- com mais de 30 edições, em 14 línguas. Outra denúncia tão poderosa do teísmo, sob a forma de ficção científica, só apareceria 20 anos depois, no conto The Pope of the Chimps, de Robert Silverberg, em que uma tentativa de explicar religião a um grupo de chimpanzés, usando linguagem de sinais, produz resultados inesperados.
Para mim, como escritor, The Streets of Ashkelon foi uma revelação. Até encontrar essa história, toda a ficção científica que conhecia ou tratava a religião com reverência (fosse uma reverência fria e distante ou a reverência do proselitismo), ou não tratava dela de modo algum. Mesmo obras antirreligiosas, como A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells, só se revelavam assim sob cuidadosa exegese. Ashkelon mudou tudo.
Adendo: No Google+, o Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa me chamou atenção para um romance de HG Wells, The Shape of Things to Come, em que um ditador "progressista" elimina o Islã e o Cristianismo, na base da porrada. O que só reforça o caráter autobiográfico desta postagem (eu havia lido A Ilha... antes de Ashkelon, mas não Shape of...), e justifica a inclusão, tardia, do "minha" no título.
Sem o conto de Harrison, é provável que meu romance Guerra Justa, ou mesmo os contos que escrevi para as antologias Fantasias Urbanas e, principalmente, para Brinquedos Mortais, não existissem.
Então, esta noite vou, com toda a gratidão, abrir meu volume de The Best of Harry Harrison e pensar sobre o poder da literatura -- sobre como um conto a respeito de um herói ateu, escrito por um americano e publicado na Inglaterra, foi capaz de afetar a vida e a obra de um escritor de outro país e de outra língua, que só iria nascer 10 anos depois de a história ser impressa.
As pessoas que falarem sobre Harry Harrison, nos próximos dias, provavelmente falarão de como Bill, Herói Galáctico é divertido, ou de como Make Room! Make Room! é profético. The Streets of Ashkelon talvez nem seja mencionado, em parte por ser um conto, em parte por ser (ainda hoje) tão subversivo.
Mas é preciso que Harry Harrison seja lembrado, não apenas como o criador de fantásticas aventuras cômicas ou profeta do caos ambiental, mas também como o homem que finalmente quebrou o tabu da religião numa vertente da ficção científica -- a gestada a partir dos "pulps" americanos -- que sempre se orgulhou de não respeitar tabu algum.
Caro Carlos
ResponderExcluirFiquei muito, muito interessado no conto, mas, numa pesquisa rápida na internet não consegui localizar nenhum local que tenha o conto completo em si ou mesmo um livro publicado no Brasil onde encontra-lo.
Você teria alguma referência sobre se o mesmo foi publicado no Brasil ou se existe algum site onde possa encontra-lo?
Oi, Adriano! Então, eu *acho* que nunca saiu em português, mas não tenho certeza. Também não o encontrei em nenhum repositório gratuito online. A publicação em papel mais recente foi no livro *50 in 50*, que celebrava os 50 anos de carreira do Harry Harrison, que dá pra achar na Amazon.
ExcluirOlha só, pessoal que coincidência:
Excluirhttp://www.lightspeedmagazine.com/fiction/the-streets-of-ashkelon/
Opa,
ResponderExcluirdá uma olhada no livro "Stranger in a Strange Land http://en.wikipedia.org/wiki/Stranger_in_a_Strange_Land"
, que também é de ficção científica e aborda temas como a religião...
Legal encontrar este blog. Eu sou fã do estilo ficção e escrevo também. Abç
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