Ceticismo e jornalismo

Por alguma razão obscura e misteriosa, as pessoas parecem ir com a minha cara lá no sul do Brasil. Não só a gaúcha Não Editora vem publicando contos meus em sua coleção Ficção de Polpa há algum tempo, como no ano passado eu já havia sido convidado para palestrar sobre fé e ciência em Curitiba. Agora, nesta sexta-feira, embarco para Porto Alegre, atendendo a um convite da Liga Humanista Secular do Brasil para participar do 1º Congresso Humanista Secular do Brasil, onde participarei de uma mesa redonda sobre ceticismo ao lado de Kentaro "Ceticismo Aberto" Mori e outras figuras de destaque no campo da difusão do pensamento crítico aqui na Tupiniquilândia.

Ainda não sei exatamente o que vou dizer quando me passarem a palavra -- a vantagem de ser uma mesa redonda é que, em último caso, posso me limitar a apenas reagir ao que os outros dirão, e por favor não me pergunte o que aconteceria se todos adotassem essa mesma estratégia -- mas estou tentando organizar meus pensamentos em torno da questão do exercício do ceticismo na prática jornalística.

A, por assim dizer, "ficha" de que esse é um problema grave me caiu durante a leitura de Flim-Flam! , de James Randi, onde ele sentencia que a única coisa que ainda faz com que as pessoas levem as alegações mais extravagantes da ufologia a sério é a "irresponsabilidade da imprensa". Ainda me lembro de como, ao ler esta frase, algo finalmente fez "clic!" na minha cabeça. E por quê?

Bem, anos antes, um jornal da cidade  onde vivo tinha publicado a notícia de que um grupo de pessoas havia encontrado sinais do pouso de um disco voador numa propriedade rural. Dias depois, o mesmo jornal trazia um desmentido meio envergonhado, no qual uma tropa de escoteiros informava que o círculo de grama queimada -- a tal "marca" do óvni -- era, apenas, o vestígio de uma fogueira deles.

A coisa toda me incomodara porque, ao menos uma análise superficial, o jornal não tinha feito nada de errado: as testemunhas do "óvni" haviam sido escrupulosamente ouvidas e suas declarações, reproduzidas sem distorção; uma "autoridade" (um ufólogo...) tinha sido também ouvida, e corretamente citada; por fim, quando os escoteiros apareceram, foi-lhes dada voz.

Mas este era apenas o aspecto superficial da questão: porque, no fundo e de modo inegável, o jornal havia  induzido seus leitores a engolir a enorme asneira de que uma mera fogueira de escoteiros era, na verdade, o rastro de uma nave espacial. Porra! Como assim? O que tinha falhado?


Disco voador atinge o Capitólio de Washington em 'Earth vs. Flying Saucers'

Um jeito de interpretar a situação é vê-la como um exemplo da aplicação burra e acrítica de protocolos -- ouça as fontes, busque uma autoridade, cite todos --, somada a uma seleção infeliz da "autoridade" a ouvir. Mas foi o conceito de "irresponsabilidade" de Randi que me permitiu, finalmente, plasmar tudo isso numa coisa só, numa causa comum: o que leva à produção de matérias jornalísticas assim é o hábito de tratar o leitor de modo irresponsável.

O jornalista que trabalha para uma empresa de comunicação tem, ao produzir uma matéria, três, para ficar no jargão do marketing, clientes: a fonte, o patrão, o leitor.

A despeito do folclore sobre como repórteres malévolos distorcem declarações e usam suas fontes para fins inomináveis, o fato é que, salvo raras exceções -- e a maioria delas, provocada mais por ignorância do que por malícia -- o jornalista tende, instintivamente, a assumir uma postura favorável à fonte. Esse é um risco tão grande, na verdade, que a crítica mais comum que faço a muitos textos jornalísticos é a de que eles não passam de "material de propaganda da fonte". Acredite, um pouco de simpatia faz muito para cooptar a boa-vontade do repórter.

Voltando ao caso específico: se as "testemunhas" do óvni eram gente boa e o ufólogo, um cara legal, este ponto está ganho.

O patrão é, claro, o cara que paga o salário do profissional. Abstraindo-se eventuais interesses escusos, o que ele quer mesmo é vender jornal (ou ter audiência na TV, etc.) e para isso precisa veicular conteúdo interessante, dramático, chocante, exclusivo, relevante. No caso específico, um disco voador é certamente muito mais tudo isso do que uma fogueira de escoteiros.

E o leitor? O leitor, assim como o patrão, também quer material interessante, dramático, chocante, etc. Mas, se quisesse só isso, ele estaria lendo meus romances de ficção científica, e não minhas reportagens. Se o leitor tem um jornal nas mãos, é porque ele quer a verdade. E é aí que está: o jornalismo que se limita a ser "tecnicamente correto", que se limita a aplicar os protocolos -- ouvir os "dois lados", respeitar as fontes, etc. -- mas que se exime de buscar a verdade, é irresponsável para com o leitor.

Claro, encontrar a verdade nem sempre é simples e, além disso, as doses cavalares de pós-modernismo rastaquera que costumam ser administradas nas faculdades de comunicação avançam, bastante, no caminho de armar o jornalista preguiçoso com desculpas altissonantes para se eximir dessa responsabilidade. Mas tente dizer a si mesmo que "não existem fatos, apenas versões" na próxima vez em que der uma canelada na perna da mesa, e veja o quanto isso ajuda.

O exercício do ceticismo racional, informado pelos processos, métodos e resultados da ciência, é fundamental nessa busca. Senão, o jornalista nunca será mais que um mero papagaio de fontes, que acredita ter o dever cumprido ao simplesmente "ouvir os dois lados" (o que poderia produzir algo assim: "O monge Cosmas, após exaustiva interpretação dos livros Bíblia, afirma com segurança que a Terra é um quadrilátero achatado; o professor Eratóstenes, por sua vez, alega ter medido a circunferência do planeta, o que indicaria que a Terra é redonda").

Mapa-múndi elaborado pelo monge medieval Cosmas Indicopleustes


Um sintoma do jornalismo acomodado e irresponsável é a substituição do ceticismo e do bom-senso pela declaração de autoridade, da pesquisa ampla pela entrevista de indivíduos interessados. Em vez, por exemplo, de buscar a melhor informação científica disponível sobre um determinado tópico -- homeopatia ou discos voadores, digamos -- reproduzem-se, acriticamente, opiniões de ufólogos e de homeopatas.

Claro, nisso tudo jaz o perigo de o jornalista se converter num monstro arrogante, numa espécie de "árbitro supremo" da verdade. Mas o risco não exime o profissional consciencioso do dever de tentar se aproximar da verdade o máximo possível, e de expor as limitações de seu trabalho ao leitor. Se corretamente executado, o exercício diligente do ceticismo é um de profunda humildade, não de arrogância, pois envolve, também, duvidar de si mesmo, dos próprios preconceitos e preconcepções.

Ninguém está dizendo que é fácil. Mas apenas assim escaparemos do duro indiciamento feito, tantos anos atrás, por James Randi.

Comentários

  1. Carlos, acho que hoje em dia a ufologia se propaga mais pelo History Channel, YOUTUBE, sites especializados e a revista UFO do que pelos jornais... E mesmo os filmes de FC tipo Spielberg e series tipo arquivo X ajudam a propagar o mito.
    E se fizermos uma busca no search do Estadao, por exemplo, veremos que o numero de noticias é pequeno (em comparacao com a decada de 70)

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    1. Oi, Osame! Concordo, mas creio também que o princípio geral e aplica a muitas outras coisas que rolam na mídia tradicional, principalmente na cobertura de saúde (e de religião, como nos anúncios acríticos de milagres de santos católicos). E eu incluiria os documentários de "deuses alienígenas" do HC na categoria de jornalismo irresponsável sem pestanejar!

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