Já parou de bater na sua mãe?

Ninguém está livre de encontrar uma pergunta capciosa de vez em quando. E quando a pergunta aparece num formulário impresso, onde respostas mais elaboradas -- como, por exemplo, "nunca bati em minha mãe, pelo menos não deste lado do útero" -- são meio difíceis de encaixar, o resultado pode ser bem embaraçoso.

Ou enganoso. É por isso que a criação de questionários para pesquisas de opinião pública, ou para censos populacionais, é uma arte tão delicada. Um caso interessante é o do recente censo da Inglaterra e País de Gales, que revelou um aumento de mais de 60% na proporção de pessoas que se declaram sem religião.

Parte deste salto se deve, provavelmente, à campanha lançada pela Associação Humanista Britânica, exortando as pessoas que não praticam a religiosidade a responder "nenhuma" à pergunta "qual sua religião".

Com o provocativo título de "Se você não é religioso, pelo amor de Deus, diga isso", a campanha pedia que os britânicos que mantém uma identidade religiosa meramente inercial -- no Brasil, o caso típico seria o da pessoa que não vai à missa há anos, usa anticoncepcional e namora um divorciado, mas que se considera "católica" porque é o que a vovó gostaria de ouvir -- que reconhecessem o fato e fossem sinceras ao responder ao censo.

A campanha chamava atenção para o caráter capcioso da questão sobre religiosidade do censo, já que a pergunta é formulada do seguinte modo: "Qual a sua religião?", o que deixa subentendido que a pessoa deve ter uma. Pesquisa realizada pela Associação Humanista havia mostrado que, respondendo a essa pergunta, 53% das pessoas se declaravam cristãs. Já à fórmula "Você é religioso?", 65% responderam "não".

Mais ainda: 48% dos 53% de autodeclarados cristãos disseram não acreditar que Jesus é o filho de Deus que voltou dos mortos. É razoável supor que essas pessoas só se declararam cristãs porque a pergunta, "Qual sua religião", não deixava clara a distinção entre filiação cultural (ter sido criado num meio dominado pelo cristianismo) e adesão religiosa.

Trata-se, no entanto, de uma distinção importante. Números sobre religião e religiosidade são levados em conta na formulação de discursos eleitorais -- os candidatos têm de saber qual a maioria que deve ser bajulada --, com reflexo sobre políticas públicas e, claro, no balanço de poder entre os diversos grupos de pressão que tentam influenciar o governo. Se não fosse a percepção de que há milhões de devotos católicos no Brasil, a CNBB não se sentiria com cacife para fazer lobby na nomeação de ministros para o STF.

Ah, sim, o Brasil. A pergunta sobre religião no formulário amostral do Censo 2010 aparecia assim:








Repare que a questão anterior, sobre a língua usada no domicílio, toma um certo cuidado em evitar uma leitura capciosa (uma vez que os mudos, estritamente, não "falam", o parêntese avisa que o uso de linguagem de sinais também conta). Já os não religiosos não recebem a mesma cortesia.

A pergunta não só subentende, de forma peremptória, que o cidadão deve ter uma religião -- as outras questões que começam com  "qual a sua..." tratam de características universais: data de nascimento, idade e etnia -- como ainda oferece, como única alternativa, "culto" (se esse formulário completo tivesse aparecido lá em casa, acho que eu respondia "satânico").

Mesmo assim, 8% dos respondentes se declararam "sem religião". É de se imaginar qual teria sido o número  se a questão, na fórmula mais honesta sugerida pela associação britânica -- "Você é religioso?" ou, talvez, "Você tem religião?" estivesse incluída.

Uma tentativa de medir o total de ateus do mundo, lançada pela Aliança Ateia Internacional, funcionou por 17 horas antes de ser derrubada por hackers. Seria bom que voltasse ao ar.

Comentários

  1. No Brasil, pelo Datafolha, 98% dos brasileiros dizem acreditar em deus ou em uma força superior. Inclusive 40% dos ateus.

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Lembro de um dia quando assistia ao Jornal Nacional, da Globo, em que divulgavam os resultados do Censo 2010. Já esperava que o grupo dos "sem religião" fosse o último, mas os números não foram ditos pelo apresentador William Bonner.
    Deve ser duro demais anunciar o aumento dos "gentios"

    A saber Censo 2010 - Tabela 1.4.1:
    ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf


    MMO

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