Falta rigor nas Humanidades... só nelas?


Se você se interessa por ciência, o assunto provavelmente chamou sua atenção: ontem, um grupo de três pesquisadores dos Estados Unidos revelou ter feito publicar, em periódicos respeitados da área de Humanidades, sete artigos totalmente idiotas -- incluindo um trecho de um manifesto nazista (nada menos que do livro Mein Kampf, de Adolf Hitler!) com a linguagem alterada para soar feminista. Um dos artigos, sobre o caráter machista e homofóbico do coito entre cães em praças públicas (sim, você leu certo) chegou a ganhar um prêmio acadêmico.

Ao todo, os autores da fraude (que eles descrevem como um experimento etnográfico) produziram vinte artigos cretinos, sete dos quais foram aceitos para publicação, seis rejeitados e sete devolvidos para correções e revisões. Entre os devolvidos, há um que defende a inclusão da astrologia como ciência legítima, num novo paradigma "feminista" de pesquisa astronômica.

As reações à pegadinha foram variadas, como mostra, por exemplo, esta reportagem do Chronicle of Higher Education. O mesmo Chronicle lembra que dois dos autores do "experimento etnográfico" já haviam pegado o mundinho das Humanidades de calças curtas antes, com o chiste do Pênis Conceitual.

Não se trata de um ataque às Humanidades em geral, é importante ressaltar, mas a um recorte específico: o dos estudos de gênero e identitários, que o trio de "etnógrafos" chama de "grievance studies", ou "estudos de ressentimento", um setor da academia que, segundo a hipótese testada por eles, parece disposto a levar a sério qualquer bobagem que pareça "empoderar" minorias ou criticar grupos vistos como de elite, ou privilegiados.

"Os freios e contrapesos céticos que deveriam caracterizar o processo acadêmico foram substituídos por uma brisa contínua de viés de confirmação, que sopra a literatura dos estudos de ressentimento cada vez mais para fora do curso", escrevem os autores, em sua justificativa-manifesto.

A fraude desta semana vem sendo comparada ao experimento conduzido por Alan Sokal nos anos 90. Sokal, um físico inconformado com a forma estúpida e exorbitante com que conceitos da física e da matemática vinham sendo apropriados por filósofos e sociólogos pós-modernos, produziu um paper deliberadamente sem sentido, que conseguiu publicar num periódico então respeitado, Social Text. Os três etnógrafos consideram que a metodologia e os processos dos grievance studies são herdeiros diretos da tradição pós-moderna que tanto incomodava Sokal.

Se esta recente etnografia parcial das Humanidades mostrou que o controle de qualidade científico-acadêmico nessas áreas ainda deixa um bocado a desejar, tantos e tantos anos depois do vexame Sokal, de lá para cá muita pesquisa foi feita sugerindo que o fenômeno não é exclusivo das ciências "moles".

Há mais de uma década, John Ioannidis publicou seu famoso artigo sobre a provável inutilidade de boa parte da pesquisa pré-clínica, em que drogas e tratamentos são testados em culturas de laboratório ou animais. Em 2012, foi publicado um levantamento que sugere que a maior parte dos estudos sobre "coisas que podem curar câncer" tem tão baixa qualidade que representa pura perda de tempo. E nem vou falar de p-hacking e outras modalidades de conduta antiética.

Afinal, em que a publicação de besteira altissonante sob a forma de grievance studies difere da publicação de resultados irreprodutíveis na pesquisa biomédica? Há alguma diferença?

Começando pelas semelhanças: nos dois casos, a poluição da literatura científica por entulho sem valor é causada por pressão social e expectativas institucionais. O denominador comum é a corrida de obstáculos em que a carreira acadêmica muitas vezes se vê transformada, com checkpoints quantitativo-burocráticos descolados de qualquer senso real de qualidade: mais importante do que ter algo a dizer é falar o jargão da tribo, seja ele feito e citações de Foucault ou barras de erro.

Outra é o impacto desse tipo de estudo mal feito na consciência popular. Não importa quantas vezes se explique que curcumina não é uma panaceia, ou que o sexo dos cães não é uma ferramenta de perpetuação do patriarcado (ao menos, não entre seres humanos). Uma vez que uma dessas ideias capture a imaginação popular (ou seja adotada por alguém com alguma coisa para vender), o diabinho está solto e não há como prendê-lo de volta.

E quanto às diferenças?

A principal talvez seja a possibilidade de confronto com a realidade. Técnicas estatísticas podem ser usadas para verificar a confiabilidade das conclusões de um estudo sobre saúde ou nutrição (foi assim que um famoso trabalho sobre dieta mediterrânea caiu em desgraça).

No caso dos grievance studies, no entanto, na maioria das vezes o único reality check tem de vir do senso crítico do revisor, do editor e, em última instância, do leitor. Mas se todos estão "vendidos" na mesma ideologia e confinados na mesma bolha, aí fica bem difícil.

Comentários

  1. Como bom hermeneuta, suas ideias são muito avançadas para o sec XXI. Vc. não nasce adiantado?

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