Enquadrando a questão da "cura gay"

"Enquadramento" é a estratégia retórica de tentar controlar a forma com que uma questão em debate é vista pelo público em geral. Um enquadramento eficaz funciona como uma espécie de funil conceitual, dirigindo a discussão para uma conclusão preconcebida. Por exemplo, a frase "o governo pode punir você pelo que está no seu sangue" soa sinistra, com até alguns tons de eugenia e fascismo no meio, mas alguém poderia dizer que esse é, basicamente, o princípio por trás da proibição de se dirigir alcoolizado.

Claro que, no caso da Lei Seca, o governo na verdade pune as pessoas por colocar a vida dos outros em perigo: o conteúdo do sangue é avaliado por ser um fator determinante, na circunstância específica. Mas é assim que o enquadramento funciona: como num filme, o quadro mostra parte da cena diante das câmeras, e omite o resto. Num enquadramento ruim (ou desonesto), o omitido acaba sendo mais importante que o mostrado.

No aparentemente interminável debate legislativo sobre se certos psicólogos deveriam ter a prerrogativa -- negada por norma do Conselho Federal de Psicologia -- de oferecer uma "cura gay" ou, para ser menos vulgar, "terapias de reorientação sexual", há uma operação de enquadramento em curso, que busca apresentar a questão como um problema de direitos individuais: nessa perspectiva, a "ditadura gayzista" estaria agindo para aprisionar, na homossexualidade, pessoas que prefeririam mudar de orientação.

Esse enquadramento, ao menos à primeira vista, contorna o ponto mais reforçado pelos defensores da proibição da oferta do "serviço": o de que a homossexualidade não é uma doença e, portanto, não requer "cura". Afinal, uma série de outras condições -- da calvície à celulite e aos pés-de-galinha -- também não são precisamente patologias, mas os membros das profissões médicas não são impedidos de oferecer tratamentos. Se há clientes em potencial, por que não haveria de haver oferta?

Mas, se formos adotar o quadro "liberdade pessoal/relação comercial", temos de levar um outro fator em consideração: a eficácia. Mesmo a mais anarco-capitalista das éticas deve condenar a quebra de contrato, o comerciante que vende e não entrega, ou que pratica o bait-and-switch -- a fraude que consiste em fazer publicidade de um produto mas, no fim, apresentar outro, de qualidade inferior, ao cliente.

E o que sabemos sobre a eficácia dos tratamentos de reorientação sexual? Bem, em 2008 foi publicado, no periódico Journal of Marital and Family Therapy um artigo com o título A Systematic Review of the Research Base on Sexual Reorientation Therapies, que analisou estudos sobre os efeitos desse tipo de tratamento realizados a partir de 1956 e até a década passada. A conclusão? "Homens e mulheres que buscam mudar comportamentos sexuais (...) devem ser informados de que a eficácia dessas terapias não foi provada, que a pesquisa sobre essas terapias é metodologicamente falha. Além disso, a teoria e a prática dessas terapias viola princípios de dignidade, competência e (...) responsabilidade social".

A questão da "responsabilidade social" merece elaboração: porque a promoção de uma "cura gay" não é como, digamos, a promoção da astrologia -- outra prática sem nenhuma base científica, mas geralmente tolerada, por ser vista como uma relação privada entre astrólogo e consulente.

Uma cartilha publicada pela Academia de Pediatria dos Estados Unidos, e endossada por mais de dez outras entidades profissionais (incluindo a Associação de Psicólogos) deixa bem claro que "tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são expressões normais da sexualidade humana", e que esforços terapêuticos para mudar a orientação sexual humana "têm grave potencial de dano para a juventude, porque apresentam a visão de que  a orientação sexual de jovens gays, lésbicas e bissexuais é uma doença ou distúrbio mental, e frequentemente tratam a incapacidade de mudar de orientação sexual como uma falha pessoal de caráter".

A Associação de Psiquiatria dos EUA, por sua vez, afirma que "os riscos potenciais da terapia reparativa são grandes, incluindo depressão, ansiedade e comportamento autodestrutivo, já que o alinhamento do terapeuta com os preconceitos sociais contra a homossexualidade pode reforçar o ódio a si mesmo já sentido pelo paciente". 

Um estudo publicado em 2002 indicava que, quando o "bullying" e a perseguição por parte dos colegas era controlado,  a taxa de suicídio e de outros comportamentos antissociais entre adolescentes gays caía ao nível do da população heterossexual da mesma idade.

Enfim: o consenso científico é de que, se os gays precisam de psicoterapia, é para aprender a lidar com a própria identidade sexual em meio a um ambiente hostil, e não para mudar de identidade -- mesmo porque essa segunda opção não existe cientificamente, e buscá-la traz um potencial real de dano, tanto físico quanto psicológico.

Não causar dano é um princípio norteador não só da ética médica, mas de todas as profissões que lidam com saúde. Impô-lo é, ou deveria ser, uma das razões de existir dos órgãos de classe, como os conselhos de psicologia que proíbem seus filiados de anunciar por aí que sabem como "curar" gays.

Comentários

  1. A tendência homossexual caracterizada por comportamentos que manifestam atração pelo mesmo sexo já foi condenada na Bíblia Sagrada como obsessão demoníaca e como perversão moral! Mesmo não participando deste conflitante debate, todos somos instantemente convidados a nos posicionar sem entrar no mérito de uma questão tão polêmica quanto impactante.

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    1. Pronto! Sempre tem que aparecer um usando a Bíblia para tentar estabelecer o que é "certo" ou "errado". Com todo respeito, não consigo enxergar uma maneira mais reducionista de debater assuntos como esse. Para mim, é chutar a racionalidade para escanteio.
      Está mais do que na hora de levarmos um pouco mais a sério estes problemas. Tem gente se suicidando por conta disso, por exemplo, quando pais evangélicos fundamentalistas se recusam a aceitar a opção sexual de um filho, usando a interpretação e instrução de pastores, que também vivem se apoiando naquele livro, como se fosse uma muleta que evitasse seus tombos, ao tropeçarem diante de argumentos sobre a realidade, já bem distantes do tempo em que foram estabelecidas as normas de conduta do Velho Testamento.

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    2. E quais seriam as qualificações dessa tal "Bíblia Sagrada" como referência para a psicologia e a psiquiatria contemporâneas?

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    3. Cada pessoa acredita no que quiser. Mas quando existem estudos científicos sérios que dizem que não é possível alterar a orientação sexual de uma pessoa, não adianta biblio-defensores espernearem. E a nós, que sabemos valorizar o trabalho de dezenas, centenas (talvez milhares) de cientistas, que dedicam suas vidas a tornar a sociedade um lugar melhor para todos, só nos resta torcer para que as religiões não tomem, novamente, o controle das instituições reguladoras da sociedade.

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  2. Sou gay, e ao contar pros meus pais aos 16 anos, passei por uma tentativa frustada de um psiquiatra tentar me curar. Ele me diagnosticou com transtorno de comportamento e compulsão sexual já na primeira sessão (!!!!!!), e me receitou um tarja preta que me deixava dopado. Foi degradante e humilhante passar por aquilo, enquanto ele tentava maneiras de me fazer voltar a infância para buscar a causa e revertê-la. Me arrependo de não ter questionado e acusado o profissional perante um comitê de ética da profissão. Hoje me curei do preconceito, e tenho conseguido curar algumas pessoas ao meu redor. Nunca fui tão feliz. Tenho 25 anos totalmente bem resolvidos, pós-graduado, sou servidor público e noivo de um médico que me faz sentir um dos caras mais sortudos do mundo. Ainda bem que algumas coisas tem cura.

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  3. Aos 61 anos devo declarar que meu filho gay e minha filha lésbica (dos 6 que tenho) não são doentes e não precisam de cura porra nenhuma.
    Não tenho mais paciência e não sou tolerante com a LGBTT-fobia que, travestida de pregação religiosa, vomita ódio e confere ares de "missão divina" para a faina daqueles que praticam violência e assassinam pessoas LGBTTs (mais de 430 desde 1º de janeiro de 2012).
    Como pai tenho o dever incontornável de amar e proteger meus filhos, de modo que não dou a outra face, não fico quieto e vou avisando: LGBTT-fobia de origem religiosa eu trato a pontapés, ainda que metafóricos. Por enquanto.
    E termino dizendo que eu e minha família podemos andar pelo mundo e pela vida de cabeça altivamente erguida: nós amamos!
    Fodam-se, LGBTT-fóbicos de merda!

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    1. Paulo, nem sei o que dizer. Pensei em dar "parabéns" por você ser e pensar assim, mas, pensando bem, ser "humano", coerente, inteligente etc, não é mérito algum, é obrigação!!!!

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    2. Está de parabéns sim, porque a nossa sociedade força o tempo todo para que ele pense o oposto. Por mais lógico e coerente que seja pensar da forma como ele pensa, quase todos os estímulos que recebemos levam a crer o contrário. Ser humano e inteligente é uma obrigação difícil de ser seguida e vista por aí. Então, um pai pensar dessa forma e defender seus filhos é sim uma quebra de paradigmas, e sim, ele está de parabéns.

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    3. Paulo, não te conheço, mas já te considero pacas! Queria que todos os pais e mães de pacientes meus que são LGBTs pensassem assim também. É muito triste tratar gente deprimida porque os próprios pais são preconceituosos. Parabéns, Paulo!

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  4. sou gay.

    o que eu entendo é que a sexualidade não é algo fechado.

    acredito de fato na Escala de Kinsey que indica que existe uma relação de homossexualidade e heterossexualidade, deste o homossexual e o heterossexual, restritos até o que tenha atração pelos dois sexos 50% a 50%.

    isso implica que nã existe uma cura, so no maximo o individuo da razao a parte heterossexual. num futuro ocorrer a relação homosseuxal, só está mostrando a porcentagem homosseuxal não se entregando a "capeta".

    o risco é que, para muitos religiosos, se uma pessoa se "curar" todoos os outros também seriam...

    esse post me abriu a mente para esse posição:

    http://psicologiadospsicologos.blogspot.com/2013/02/homossexualidade-como-curar-o-que-nao-e.html

    agora como explicar na biblia tantas difernças possiveis sexualidade: casos de homens cujos cromossomos y, por qualquer motivo, são inativos e fenotipicamente são mulheres?
    e a transexualidade?? e o hermafordismo??

    é horrivel querer aplicar conhecimentos antiguados atualmente e prejudicar o despertar da sexualidade das pessoas...

    carlos orsi tenho um grande respeito por ti. parabens pel seu trabalho.

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