Cantada, crime e censura
Parece que algumas pessoas estão tendo dificuldade em absorver o resultado da Pesquisa Chega de Fiu-Fiu, segundo a qual 83% das mulheres não gosta de ouvir cantada -- entendendo-se, aí, "cantada" como uma manifestação não-solicitada de interesse sexual em espaço público.
De todas as críticas ao resultado, talvez a única que tem algum valor real é a do vício da amostra: a pesquisa foi aplicada por um site feminista, no âmbito de uma campanha contra a cantada, o que torna o resultado, do ponto de vista estatístico, tão discutível quanto o uma pesquisa do site do Greenpeace sobre rotulagem obrigatória de transgênicos: ninguém vai se surpreender se 90% dos respondentes forem a favor!
Ainda assim, quase 8.000 mulheres responderam. E mais de 6.000 delas disseram que não gostam de cantadas. Números absolutos costumam ser um mau guia para avaliar pesquisas, mas num tema tão íntimo quanto a reação a cantadas, a opinião negativa de 6.000 mulheres certamente deve ser levada a sério.
Ênfase no negativa: certas reações à pesquisa chamaram a atenção para o fato de que algumas mulheres, afinal, gostam de cantadas, mas proponho que as duas situações -- gostar ou não gostar -- estão longe de ser simétricas. Em virtualmente todo tipo de interação social, o "não gosto/não quero" é assumido como default. É por isso que se deve pedir licença para fumar na casa dos outros, e que convidamos as pessoas para eventos, em vez de arrastá-las, e oferecemos bebida e comida aos convidados em festas, em vez de simplesmente enfiar copos e salgadinhos em suas mãos. Comportamento civilizado, em geral, implica em deixar o outro confortável o suficiente para dizer "não".
E é exatamente isso que a cantada não faz. Mesmo quando ela é formulada sob a forma de pergunta -- "Vamos lá em casa ouvir o cedê do Robertão?" -- se a frase é gritada por um desconhecido enquanto a mulher passa pela calçada, a liberdade do "não" está lá, mas o elemento de conforto encontra-se, obviamente, ausente. Se você não tem certeza de que a pessoa com quem está interagindo deseja o comportamento C, não faça C. Ou pergunte antes, mas de uma forma que permita que a pessoa se sinta segura e confortável para recusar. O que vale para qualquer coisa, de acender cigarro a contar piada suja e a convidar para ouvir o cedê do Robertão.
Isso tudo é simplesmente ter boa educação, não ser um bully, ou um babaca. Por que, nas relações que envolvem romance e sexo, seria diferente? Alguns homens reclamaram da reação pública de repúdio das feministas à cantada, dizendo que ela "criminaliza o elogio". Trata-se de um típico excesso retórico: "criminalizar" um comportamento significa que o governo pode mandar homens armados atrás de quem o pratica. Dizer que um comportamento é babaquice e falta de educação é outra coisa.
Também se fala em "censura". Só se for no sentido de repreender -- tipo, "Amélia censurou a bebedeira de Abelardo". Censura, no sentido de proibir forçosamente a expressão de ideias e informações, é algo que o Judiciário se apraz de fazer com jornalistas. Chamar a atenção para a inadequação de certos comportamentos é, de novo, outra coisa.
Há ainda quem expresse temor pela extinção da espécie -- se não se pode mais "chegar junto nas mina", de onde virão o amor e o romance? Não estamos burocratizando o sexo, exigindo firma reconhecida em três vias antes do primeiro beijo?
Não sei se quem faz essa objeção está falando sério, sendo cínico ou simplesmente não pensou bem no assunto. Não deveria ser necessário lembrar de que nem todo consentimento -- ou recusa -- precisa ser verbal, e que a adequação da abordagem varia com o contexto. Dá para ler errado o contexto, e eventualmente fazer bobagem? Claro que dá. Errar é humano. Mas parar, desistir, pedir desculpas, sair de fininho, pensar a respeito e aprender com a experiência também é.
De todas as críticas ao resultado, talvez a única que tem algum valor real é a do vício da amostra: a pesquisa foi aplicada por um site feminista, no âmbito de uma campanha contra a cantada, o que torna o resultado, do ponto de vista estatístico, tão discutível quanto o uma pesquisa do site do Greenpeace sobre rotulagem obrigatória de transgênicos: ninguém vai se surpreender se 90% dos respondentes forem a favor!
Ainda assim, quase 8.000 mulheres responderam. E mais de 6.000 delas disseram que não gostam de cantadas. Números absolutos costumam ser um mau guia para avaliar pesquisas, mas num tema tão íntimo quanto a reação a cantadas, a opinião negativa de 6.000 mulheres certamente deve ser levada a sério.
Ênfase no negativa: certas reações à pesquisa chamaram a atenção para o fato de que algumas mulheres, afinal, gostam de cantadas, mas proponho que as duas situações -- gostar ou não gostar -- estão longe de ser simétricas. Em virtualmente todo tipo de interação social, o "não gosto/não quero" é assumido como default. É por isso que se deve pedir licença para fumar na casa dos outros, e que convidamos as pessoas para eventos, em vez de arrastá-las, e oferecemos bebida e comida aos convidados em festas, em vez de simplesmente enfiar copos e salgadinhos em suas mãos. Comportamento civilizado, em geral, implica em deixar o outro confortável o suficiente para dizer "não".
E é exatamente isso que a cantada não faz. Mesmo quando ela é formulada sob a forma de pergunta -- "Vamos lá em casa ouvir o cedê do Robertão?" -- se a frase é gritada por um desconhecido enquanto a mulher passa pela calçada, a liberdade do "não" está lá, mas o elemento de conforto encontra-se, obviamente, ausente. Se você não tem certeza de que a pessoa com quem está interagindo deseja o comportamento C, não faça C. Ou pergunte antes, mas de uma forma que permita que a pessoa se sinta segura e confortável para recusar. O que vale para qualquer coisa, de acender cigarro a contar piada suja e a convidar para ouvir o cedê do Robertão.
Isso tudo é simplesmente ter boa educação, não ser um bully, ou um babaca. Por que, nas relações que envolvem romance e sexo, seria diferente? Alguns homens reclamaram da reação pública de repúdio das feministas à cantada, dizendo que ela "criminaliza o elogio". Trata-se de um típico excesso retórico: "criminalizar" um comportamento significa que o governo pode mandar homens armados atrás de quem o pratica. Dizer que um comportamento é babaquice e falta de educação é outra coisa.
Também se fala em "censura". Só se for no sentido de repreender -- tipo, "Amélia censurou a bebedeira de Abelardo". Censura, no sentido de proibir forçosamente a expressão de ideias e informações, é algo que o Judiciário se apraz de fazer com jornalistas. Chamar a atenção para a inadequação de certos comportamentos é, de novo, outra coisa.
Há ainda quem expresse temor pela extinção da espécie -- se não se pode mais "chegar junto nas mina", de onde virão o amor e o romance? Não estamos burocratizando o sexo, exigindo firma reconhecida em três vias antes do primeiro beijo?
Não sei se quem faz essa objeção está falando sério, sendo cínico ou simplesmente não pensou bem no assunto. Não deveria ser necessário lembrar de que nem todo consentimento -- ou recusa -- precisa ser verbal, e que a adequação da abordagem varia com o contexto. Dá para ler errado o contexto, e eventualmente fazer bobagem? Claro que dá. Errar é humano. Mas parar, desistir, pedir desculpas, sair de fininho, pensar a respeito e aprender com a experiência também é.
"Ou pergunte antes, mas de uma forma que permita que a pessoa se sinta segura e confortável para recusar."
ResponderExcluirConsegue pensar em um modo que isso não redunde em um anticlímax?
Uma diferença da interação do tipo 'cantada' e 'flerte' e o fumo é que envolve culturalmente justamente o pressuposto da 'não-solicitação': cai na faixa de presentes, cumprimentos, elogios.
As que não gostam devem ser respeitadas nessa vontade? Sim. Devem.
As que gostam devem ser respeitadas nessa vontade? Também.
Então é preciso distingui-las de modo que não incomode as que não gostam. Se for possível formular tal pergunta sem 'cortar' o clima com as que gostam, nem incomodar as que não gostam será a resposta da pergunta que venho fazendo faz tempo.
Que tipo de formulações atende a esse critério?
[]s,
Roberto Takata
Possivelmente algum tipo de formulação não verbal -- a boa e velha troca de olhares, sorrisos, etc. -- ou uma abordagem verbal mais gradual. A principal dificuldade, acho, sempre vai estar em "ler" corretamente a situação e o clima psicológico e emocional, mas creio que na maioria das cantadas incômodas nem há uma situação ambígua para "ler": a coisa se mostra claramente inconveniente para qualquer observador que não o "cantante".
ExcluirÉ um tanto quanto mais complicado. Há parte do discurso - das próprias mulheres - de que a "resistência" faz parte do processo.
ExcluirE.g. “Mulher que diz que não curte ser chamada de gostosa está fazendo doce. Não sou menos inteligente porque alguém elogiou minhas coxas.”
http://neveraskedquestions.blogspot.com.br/2013/05/um-pouco-mais-sobre-cantadas-ajuste.html
"n adianta ficar de nhenhenhe, pq td mulher gosta de ser chamada de gostosa"
https://twitter.com/oshluiza/status/376104806223314944
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"mulher que acha ruim q chama de gostosa 'ah nao chama de gostosa me respeita' ta bom ô feia do caralho"
https://twitter.com/stopgabi/status/377146535659593730
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Não apenas os sinais sutis são naturalmente ambíguos.
A percepção da cantada entre as mulheres é bem mais variado do que faz supor a pesquisa do Olga. Em 2001, em pesquisa nacional - portanto sem viés de autosseleção - 32% das mulheres consideram as cantadas como desrespeitosas, 27% as recebem como elogio; 8% dizem que depende da cantada, 6% são indiferentes e 27% declaram que nunca foram cantadas.
http://neveraskedquestions.blogspot.com.br/2012/04/cantadas-galanteios-e-outras-questoes.html
Verdade que esses dados estão defasados 12 anos - até por isso estou tentando convencer a LiHS e grupos feministas a fazerem campanha para arrecadar dinheiro pra uma contratar uma nova pesquisa com representatividade estatística.
[]s,
Roberto Takata
Takata,
Excluirimagina que você está saindo do trabalho e é enquadrado na rua por um grupo de homens -sim, homens- bem mais fortes do que você e que te chamam de gostoso e tudo o que querem fazer com seu corpo, opa, estou sendo feminina e delicada demais, tudo o que querem fazer com a sua bunda, falando como querem te pegar na próxima esquina.
Agora imagina que você vai para um bar e, enquanto está sozinho, talvez pegando uma cerveja no balcão, um cara passa a mão na sua bunda -sim, um cara, bem mais forte que você e cercado pelos amigos deles, todos eles bem mais fortes que você, e todos juntos dão risada da sua cara.
Imagina que todas as vezes que você quer sair de casa você tem de pensar com antecedência no trajeto que vai fazer a pé, para identificar potenciais momentos de perigo -aka se você vai passar por áreas que podem acabar em estupro.
Essa pesquisa é uma desculpa para que o tema volte a ser discutido. Não importa se há um viés da amostragem, nem as exceções. O que importa é a mensagem.
Assédio, meus caros Takata e Orsi, não é cantada.
E é sobre assédio que essa pesquisa versa.
Eu acho que há um problema sim quando nós, mulheres, usamos também a palavra "cantada" para denominar casos que são na verdade de assédio. Porque dessa forma confusões como a que você fez são comuns, e acabamos involuntariamente reforçando aquilo que mais desprezamos: que sofrer um assédio é ok, pois trata-se "apenas de uma cantada".
Mas te digo, Takata, que toda mulher sabe a diferença.
E você?
[]s
Cristina,
ExcluirEu chamo a atenção para a variação existente *entre as mulheres* da percepção sobre "cantada de rua".
Não estou discutindo os extremos, mas a faixa intermediária. Há as que acham "gostosa" ofensiva, há as que não. Há as quem acham "delícia" ofensiva. Há as que não. Há até mesmo as que acham "esta cadeira está ocupada?" ofensiva.
Todo mulher sabe a diferença - mas pra ela. Por critérios pessoais e que variam de acordo com experiências prévias. As que passaram por abordagens violentas ou mais incisivas poderão achar até as mais leves inaceitáveis.
Aliás, uma pesquisa nacional seria útil também para mapear a variação semântica da cantada de rua.
[]s,
Roberto Takata
"GOSOTOSA"
ResponderExcluir"me deixa em paz!"
"então vai tomar no cu, mocréia"
isso foi hoje de manhã.
imagina se eu tivesse respondido da forma que tal abordagem merecia?
faz com que eu me sinta tão segura andando na rua desse jeito.
Quando vejo as "cantadas" ruidosas -- que tiozões e moleques falam para moças e pedreiros gritam a, bem, qualquer mulher -- eu fico sempre pensando no nível de recalque necessário para que o "cantador" realize seu ato: trata-se, no fundo, de querer anular sua própria impotência. Não basta simplesmente olhar e admirar, é preciso se auto-afirmar -- por que, quando a mulher em questão exibe ao tiozão/moleque/pedreiro aquilo que ele deseja e não pode "possuir", ele se sente diminuído em sua masculinidade; para "contra-atacar" ele instintivamente precisa vexar publicamente a mulher -- para afirmar seu poder a si mesmo e evitar a mínima sensação de insegurança.
ResponderExcluirUm tanto mais de educação humana talvez já fosse suficiente para ensiná-los a lidar com a própria insegurança de maneira menos predatória e escrota.
http://www.youtube.com/watch?v=FaG7PUAHzb4
ResponderExcluirTem que mulher que gosta de ouvir um gostosa? Sim. É a maioria? Não.
ResponderExcluirSimples assim, é só não chamar ninguém de gostosa. Se interessou por uma garota? Que tal ser civilizado e dizer: Oi.
Ois funcionam muito bem.
Ouço "gostosa" TODO DIA mas apenas duas vezes alguém disse oi. Foram meninos tímidos, que chegaram perto de mim e puxaram conversa. Conversei com eles. Simples assim. Só não deu em nada pq além de eu ter namorado, eram BEM mais novos do que eu. (eu me visto como uma menina de 16 anos, eu sei).
Então PAREM de usar o "homens viverão virgens e sozinhos pela eternidade se cantadas forem proibidas.". Essa desculpa não cola. Além de partir do princípio de que você é um completo imbecil e sem assunto.
Acho que é mais ou menos por aí, como você falou, mas minha experiência pessoal é de garotas que nem mesmo a um "oi" respondiam e até a um olhar já vinham tirar satisfação, com coisas do tipo "Está olhando o que?".
ExcluirO que eu pelo menos sentia e sinto ainda hoje no discurso de ambos é que não há uma clara definição de onde se situa a linha tênue entre o que é uma cantada, ou um galanteio do que é inconveniente ou assédio. Realmente isso varia de pessoa para pessoa e é nisso que reside a dificuldade em definir e entender. Claro, estou desconsiderando os casos em que a diferença é óbvia.
Apenas para citar mais exemplos, seria interessante que mulheres fossem mais objetivas sobre o que gostam ou não. Na época que era solteiro, vi uma reportagem na qual mulheres diziam que não gostavam das cantadas "lugar comum", tipo "você vem sempre aqui?" ou "que horas são?", enquanto que no mundo real eu via esse tipo de coisa dar certo.
Outro caso é o do "Oi". Cansei de tentar entabular conversas com garotas pelas quais me interessava, tanto na rua como nas baladas e sinceramente houve casos de sucesso, mas variava até o extremo de uma garota chamar um policial porque eu a estava olhando.
Hoje não preciso mais me preocupar com essas coisas, mas seria interessante que as mulheres tomassem uma posição mais clara sobre o assunto. Deveriam se convencer que homens não têm poderes telepáticos nem de clarividência para saber o histórico pessoal de cada uma de vocês ou para adivinhar suas intenções e pensamentos.
Ou pelo menos um pouco de coerência, determinar claramente onde termina o agradável e começa o desagradável e agir dentro desse padrão. Seria bom para ambas as partes.
É mentira.elas adoram!Feministas são umas mau amadas.
ResponderExcluirEssa Andrea é uma gatinha.
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