Papai Noel faz mal?

Krampus, o demônio de Natal
Entrando no clima da temporada, resolvi ler The Myths that Stole Christmas ("Os Mitos que Roubaram o Natal"), do filósofo David Kyle Johnson. O livro apresenta alguns fatos já razoavelmente bem conhecidos: por exemplo, que os festejos do solstício de fim de ano nunca foram e nem são uma exclusividade cristã, que Papai Noel tem muito mais a ver com divindades pagãs como Pã e Odin e, até mesmo, com demônios medievais, como o Krampus, do que com São Nicolau (que, aliás, provavelmente nunca existiu, sendo uma versão cristianizada do taumaturgo pitagórico Apolônio de Tiana).

Johnson, no entanto, vai além desses mitos mais conhecidos, tecendo argumentos contra o "mito" de que as compras desenfreadas de Natal são boas apara a economia -- não são, diz ele, já que envolvem desperdício de recursos e abuso do crédito -- e atacando o caráter estressante e compulsório dos rituais de troca de presentes. Quando ele define a compra de presentes de Natal como o ato de "gastar dinheiro que não temos comprando, para pessoas de quem realmente não gostamos, coisas que elas não querem e de que não precisam", a imagem de inúmeras festas de Amigo Secreto me saltou imediatamente aos olhos.

A afirmação mais polêmica do livro, no entanto, deve ser a de que sustentar a crença das crianças na realidade de Papai Noel é imoral e pernicioso. Imoral porque é uma mentira pura e simples -- e os pais não devem mentir para os filhos -- e pernicioso por uma série de motivos que o autor enumera.

O primeiro é que faz com que as crianças que realmente acreditam nos pais passem por idiotas: quando os coleguinhas que já perceberam que Papai Noel não existe se põem a humilhá-la, a criança que ainda confia na palavra dos pais se vê punida por sua devoção filial, e essa quebra de confiança entre pais e filhos pode ter consequências dolorosas (o livro cita alguns exemplos).

O segundo é que embota a bússola moral, inicialmente ao vincular virtude a recompensas materiais, e não a  valores, e depois por contradição: a criança pobre e decente que vê o "bully" rico ganhar presentes fantabulásticos todo ano tende a acabar se perguntando o que diabo é "bom comportamento", afinal, e para que serve. O terceiro é que torna as crianças gananciosas e ingratas.

O quarto, e talvez mais importante, é que o reforço da crença em Papai Noel "adestra" as crianças para um hábito mental de credulidade e atrasa o desenvolvimento do senso crítico, já que, a fim de sustentar a ilusão, muitos pais acabam usando argumentos falaciosos para debelar as dúvidas razoáveis dos filhos quanto à existência de Papai Noel. Uma criança que ouve dos pais que "se você quiser acreditar, ele existe" já está pré-programada para cair em engabelações como O Segredo, acreditar no poder do pensamento positivo, apelar para curas quânticas e adjacências várias.

Johnson antecipa a objeção mais óbvia: "ei, mas são apenas crianças!". Em resposta, escreve: "Os anos formativos são os mais importantes(...) As lições que aprendemos na infância são as que ficam conosco. Cada lição ruim sobre pensamento crítico que uma criança aprende será exponencialmente mais difícil de desaprender (...) Não espero que garotos de quatro anos sejam pensadores críticos, mas digo que devemos dar lições de pensamento crítico, recomendar esse tipo de pensamento e encorajá-lo, pelo exemplo, desde cedo. Você não espera a criança saber falar para aí começar a ensiná-la a falar, e você nunca a encoraja a falar errado."

É fácil, suponho, admitir que as críticas de Johnson têm algum mérito, mas são exageradas. Mas serão, mesmo? Eu ainda me lembro de ter me sentido traído quando achei os presentes escondidos no fundo do armário, no dia 23 de dezembro, trinta e tantos anos atrás.

Por outro lado, as objeções que eu até então vinha levantando contra Papai Noel não eram muito diferentes das que tinha, ainda em forma embrionária, a respeito de Deus e de Jesus, e o choque de descobrir que elas eram, afinal, válidas no que dizia respeito ao Bom Velhinho talvez tenha aumentado minha confiança em sua aplicação mais ampla.

Falando nisso, Jonhson nota que a conspiração dos adultos para convencer as crianças da realidade de Papai Noel é mais forte, até, que a paixão religiosa: outdoors dizendo que Deus não existe são até aceitáveis, ainda que polêmicos, afirma, mas propõe um experimento: tente pôr um cartaz na beira de uma estrada movimentada dizendo "Não existe Papai Noel". O autor aposta que nenhuma empresa aceitará a encomenda e, se o outdoor chegar a ser montado, seu criador correrá sério risco de sofrer linchamento.

Não duvido.

Comentários

  1. Olá Carlos Orsi. Gostei de seu texto. Não conheço o livro citado, mas, segundo como você descreveu, também acho as críticas de Johnson um tanto exageradas. Não pelo que elas contêm de verdade, mas por estarem fundadas numa pedagogia um tanto paternalista. Quanto de nosso ser é comandado por uma visão crítica das coisas? Acho que bem pouco. Tenho a impressão de que, no geral, gostamos de enganar e de ser enganados.

    Há uns dois anos atrás, em uma dessas reportagens televisivas de fim de ano, vi uma cena banal que nunca consegui esquecer. Uma mãe, com uma bebê na mão, que dizia que teve uma infância miserável, sem nenhum acesso ao mito do Papai Noel, e queria que sua filha vivesse esse mito, e faria de tudo para que isso acontecesse. Então, o que se passa pela cabeça de alguém que pensa assim? No mínimo, a ideia de que o encanto do Papai Noel é uma coisa essencialmente boa; e se alguém ousasse relativizar essa ideia sentimental, sem dúvida que essa mãe iria se ofender profundamente.

    Enfim, sobre você ter dito que o mito do Papei Noel tem um estranho apelo, até mais forte do que a paixão religiosa, assino embaixo. Até escrevi um texto reflexivo sobre essa constatação. Se interessar a leitura:

    http://bibliotecademidgar.blogspot.com.br/2013/12/nostalgia-de-um-natal-que-nao-ha.html

    Grande abraço!

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