Cuidado com o Natal reptiliano
Em anos anteriores, me acostumei a publicar aqui no blog, sempre nesta época do ano, uma postagem sobre algum aspecto do mito cristão, sua relação com as festas pagãs do solstício e as tradições que se articulam em torno desses dois focos. Ano passado cheguei a questionar a salubridade do mito de Papai Noel, talvez uma das maiores heresias possíveis no mundo moderno.
Confesso que para este ano já estava me sentindo meio sem assunto -- das contradições da narrativa da natividade à verdadeira natureza da Estrela de Belém, praticamente tudo já foi pisado e repisado -- mas aí me toquei que não havia motivo para me prender aos relatos canônicos. Por que não falar um pouco dos fanfics? E, já que o blog anda tratando, com uma certa assiduidade, das narrativas sobre deuses astronautas, por que não incluir mais uma divindade na lista dos ETs disfarçados de mito?
Acho que ninguém vai ficar surpreso em saber que já existe uma vasta literatura discutindo e defendendo a ideia de que Jesus de Nazaré tem origem alienígena. E não me refiro apenas a obras de ficção como o sensacional romance Jesus on Mars, de Philip José Farmer, mas a obras que se pretendem livros "sérios" de história e religião. O caso mais emblemático talvez seja a duologia Bloodline of the Holy Grail (1996) e Genesis of the Grail Kings (1999), de autoria de Laurence Gardner (1943-2010), um autor britânico que se dizia historiador e genealogista, mas que aparentemente não tinha nenhuma credencial válida para apoiar a presunção.
Avante: em seus livros, Gardner promove o casamento improvável de duas linhas de pensamento conspiratório, a das teorias sobre a fuga de Jesus para a França e seu casamento com Maria Madalena, popularizadas nos livros da série O Código da Vinci (ficcionais, mas inspirados em obras de "não ficção" como o infame The Holy Blood and the Holy Grail [1982]), e a tese de que a mitologia suméria, na verdade, esconde o relato de que a raça humana é fruto de manipulação genética alienígena, promovida por Zecharia Sitchin (1920-2010).
De acordo com Gardner, os alienígenas, que depois acabaram confundidos com o panteão sumério, criaram não só os humanos ordinários, como escravos, mas também uma raça superior de feitores, fertilizando óvulos humanos com esperma extraterrestre. Dessa linhagem teria surgido a Casa de David e, por tabela, Jesus. Que não morreu na cruz, mas fugiu para a França, etc., no esquema Código da Vinci.
Essa super-raça originalmente se alimentava do sangue menstrual das fêmeas alienígenas (sério, tá escrito lá) e, graças a isso, tinha uma expectativa de vida formidável, o que explica tanto a longevidade dos patriarcas do Velho Testamento quanto o mito do Santo Graal e o rito da eucaristia -- porque o cálice simboliza o útero, e o vinho o sangue, e o sangue que sai do útero é... Enfim, você já vê pra que lado isso vai.
Há muita coisa que torna esse tipo de conversa atraente. O primeiro é o frisson de se ter acesso a uma simbologia secreta: enquanto o resto do mundo permanece cego, você, de repente, tem acesso à chave da verdade por trás de tudo. Não é à toa que os conspiracionistas mais hardcore se referem ao público em geral como "sheeple", fusão de sheep (carneiro, o animal que aceita pacificamente ser tosquiado/morto) e people (povo, gente).
Mas nem tudo aí é invencionice recente. A narrativa de que Jesus sobreviveu à crucificação, por exemplo, parece ter sido usada originalmente em polêmicas anticristãs ainda no tempos dos primeiros evangelhos. Também se viu adotada por grupos cristãos gnósticos, e foi retomada pelo islã. Mais tarde, as versões gnóstica e islâmica acabaram fundidas no inacreditável Evangelho de Barnabé, composto na Idade Média, que diz que Jesus fugiu da crucificação, deixando um Judas transfigurado para morrer em seu lugar. Parte significativa desse texto apócrifo consiste de Judas esperneando e tentando convencer os romanos de que ele não é Jesus, sem sucesso, até o amargo fim.
Nova bifurcação do enredo aparece quando se discute o destino do Jesus sobrevivente: França ou Índia? Ou algum outro lugar qualquer? Se ficarmos na linha francesa, surgem possibilidades ainda mais vertiginosas: de acordo com essa tese, Jesus e Madalena originaram a dinastia merovíngia de reis da França e, por meio dela, são os ancestrais de todas as famílias reais da Europa. Só que, segundo a teoria da conspiração reptiliana de David Icke, a família real britânica é composta por répteis alienígenas disfarçados. No sincretismo Gardner-Icke, então, Jesus foi um lagarto disfarçado.
Por outro lado, há autores (incluindo brasileiros) que dizem que, ao criar a humanidade, os alienígenas sumérios inseriram no genoma da espécie uma "trava de DNA réptil" para impedir nosso acesso pleno à glândula pineal (por quê a pineal? bem, as confusões esotéricas em torno dessa glândula merecem uma postagem à parte). Poucas linhagens escaparam desse implante réptil, e por conta disso são capazes de operar milagres paranormais. Então, dependendo de quem você ouve, ou a linhagem de Jesus é reptiliana, ou ela não é, mas todos nós somos.
Não se deixe enganar pelo ridículo do enunciado: ideias desse tipo têm um alcance muito maior do que se imagina. Por estarem fora do radar ideológico do mainstream, não enfrentam os anticorpos mais tradicionais do debate público. Se soam risíveis ou absurdas, não há nada, a priori, que as torne mais hilariantes ou irracionais do que um nascimento virgem ou a transformação de água em vinho para animar uma festa de casamento.
Confesso que para este ano já estava me sentindo meio sem assunto -- das contradições da narrativa da natividade à verdadeira natureza da Estrela de Belém, praticamente tudo já foi pisado e repisado -- mas aí me toquei que não havia motivo para me prender aos relatos canônicos. Por que não falar um pouco dos fanfics? E, já que o blog anda tratando, com uma certa assiduidade, das narrativas sobre deuses astronautas, por que não incluir mais uma divindade na lista dos ETs disfarçados de mito?
Acho que ninguém vai ficar surpreso em saber que já existe uma vasta literatura discutindo e defendendo a ideia de que Jesus de Nazaré tem origem alienígena. E não me refiro apenas a obras de ficção como o sensacional romance Jesus on Mars, de Philip José Farmer, mas a obras que se pretendem livros "sérios" de história e religião. O caso mais emblemático talvez seja a duologia Bloodline of the Holy Grail (1996) e Genesis of the Grail Kings (1999), de autoria de Laurence Gardner (1943-2010), um autor britânico que se dizia historiador e genealogista, mas que aparentemente não tinha nenhuma credencial válida para apoiar a presunção.
Avante: em seus livros, Gardner promove o casamento improvável de duas linhas de pensamento conspiratório, a das teorias sobre a fuga de Jesus para a França e seu casamento com Maria Madalena, popularizadas nos livros da série O Código da Vinci (ficcionais, mas inspirados em obras de "não ficção" como o infame The Holy Blood and the Holy Grail [1982]), e a tese de que a mitologia suméria, na verdade, esconde o relato de que a raça humana é fruto de manipulação genética alienígena, promovida por Zecharia Sitchin (1920-2010).
De acordo com Gardner, os alienígenas, que depois acabaram confundidos com o panteão sumério, criaram não só os humanos ordinários, como escravos, mas também uma raça superior de feitores, fertilizando óvulos humanos com esperma extraterrestre. Dessa linhagem teria surgido a Casa de David e, por tabela, Jesus. Que não morreu na cruz, mas fugiu para a França, etc., no esquema Código da Vinci.
Essa super-raça originalmente se alimentava do sangue menstrual das fêmeas alienígenas (sério, tá escrito lá) e, graças a isso, tinha uma expectativa de vida formidável, o que explica tanto a longevidade dos patriarcas do Velho Testamento quanto o mito do Santo Graal e o rito da eucaristia -- porque o cálice simboliza o útero, e o vinho o sangue, e o sangue que sai do útero é... Enfim, você já vê pra que lado isso vai.
Há muita coisa que torna esse tipo de conversa atraente. O primeiro é o frisson de se ter acesso a uma simbologia secreta: enquanto o resto do mundo permanece cego, você, de repente, tem acesso à chave da verdade por trás de tudo. Não é à toa que os conspiracionistas mais hardcore se referem ao público em geral como "sheeple", fusão de sheep (carneiro, o animal que aceita pacificamente ser tosquiado/morto) e people (povo, gente).
Mas nem tudo aí é invencionice recente. A narrativa de que Jesus sobreviveu à crucificação, por exemplo, parece ter sido usada originalmente em polêmicas anticristãs ainda no tempos dos primeiros evangelhos. Também se viu adotada por grupos cristãos gnósticos, e foi retomada pelo islã. Mais tarde, as versões gnóstica e islâmica acabaram fundidas no inacreditável Evangelho de Barnabé, composto na Idade Média, que diz que Jesus fugiu da crucificação, deixando um Judas transfigurado para morrer em seu lugar. Parte significativa desse texto apócrifo consiste de Judas esperneando e tentando convencer os romanos de que ele não é Jesus, sem sucesso, até o amargo fim.
Nova bifurcação do enredo aparece quando se discute o destino do Jesus sobrevivente: França ou Índia? Ou algum outro lugar qualquer? Se ficarmos na linha francesa, surgem possibilidades ainda mais vertiginosas: de acordo com essa tese, Jesus e Madalena originaram a dinastia merovíngia de reis da França e, por meio dela, são os ancestrais de todas as famílias reais da Europa. Só que, segundo a teoria da conspiração reptiliana de David Icke, a família real britânica é composta por répteis alienígenas disfarçados. No sincretismo Gardner-Icke, então, Jesus foi um lagarto disfarçado.
Por outro lado, há autores (incluindo brasileiros) que dizem que, ao criar a humanidade, os alienígenas sumérios inseriram no genoma da espécie uma "trava de DNA réptil" para impedir nosso acesso pleno à glândula pineal (por quê a pineal? bem, as confusões esotéricas em torno dessa glândula merecem uma postagem à parte). Poucas linhagens escaparam desse implante réptil, e por conta disso são capazes de operar milagres paranormais. Então, dependendo de quem você ouve, ou a linhagem de Jesus é reptiliana, ou ela não é, mas todos nós somos.
Não se deixe enganar pelo ridículo do enunciado: ideias desse tipo têm um alcance muito maior do que se imagina. Por estarem fora do radar ideológico do mainstream, não enfrentam os anticorpos mais tradicionais do debate público. Se soam risíveis ou absurdas, não há nada, a priori, que as torne mais hilariantes ou irracionais do que um nascimento virgem ou a transformação de água em vinho para animar uma festa de casamento.
Na verdade, por conta de sua roupagem pseudocientífica, oferecem às pessoas um modo de resolver a dissonância cognitiva causada pelo desejo de manter a fé em algum tipo de literalidade dos textos sagrados e, ao mesmo tempo, sentir-se um membro sofisticado de uma cultura técnico-materialista. Afinal, se a serpente do Éden era um alienígena reptiliano, e os milagres de cura são uma função da glândula pineal dos sumérios, tudo "se encaixa".
De repente, a Bíblia e a ciência podem ser verdade ao mesmo tempo e da mesma maneira, com o bônus de que apenas uma elite esperta (na qual o crente, modéstia à parte, se inclui) tem acesso à chave que torna a reconciliação possível. O problema é que a paranoia elitista que pega carona nesse tipo de crença ajuda muito a dividir o mundo entre "nós" (sábios, puros) e "eles" (reptilianos, sheeple), o que não é bom para ninguém.
Um livro de muito sucesso que também considera Jesus como tendo origem alienígena é "Operação Cavalo de Troia". Uma análise do livro se encontra aqui:
ResponderExcluirhttp://alboberro.blogspot.com.br/2010/11/critica-de-livro-operacao-cavalo-de.html