Filosofia da falsa polêmica
O livro de Harker é um curso de filosofia da ciência construído em torno do tema das falsas controvérsias. Ele abre com uma revisão histórica do caso da percepção pública da relação entre tabaco e câncer -- que se tornou consenso na comunidade científica décadas antes de ser aceita pela população, graças às manobras publicitárias diversionistas da indústria -- e então se lança numa densa discussão de temas filosóficos relacionados à percepção da ciência e ao fazer científico.
O autor faz um ótimo trabalho desmistificando assuntos pedregosos e comumente usados de modo desonesto por semeadores de controvérsias, como o falibilismo (qualquer teoria científica pode, em princípio, estar errada), o chamado popperianismo "ingênuo" (a concepção errônea, baseada numa certa interpretação do trabalho de Karl Popper, de que basta uma anomalia inexplicada para mandar uma teoria para o cadafalso), o abuso do princípio da indeterminação das teorias pelos dados (é sempre concebível que existam explicações alternativas para os fatos que usamos para sustentar uma teoria -- concebível, sim, mas até que ponto plausível?) e os efeitos de pressões sociais, econômicas e políticas sobre os cientistas.
Usando epistemologia e sociologia da ciência como um par de instrumentos afiados, Harker, primeiro, estabelece que incerteza e convicção não são mutuamente excludentes -- o fato de não existir certeza absoluta de que uma explicação é correta não nega a possibilidade de ela ser a melhor que há -- e, depois, constrói o caso de que o consenso da comunidade científica, dadas as características dessa comunidade (hábito de crítica metodológica, revisão pelos pares, descentralização, tensão permanente entre competição e colaboração, etc.) tende a produzir sempre a melhor explicação possível: aquela que, mesmo incerta, é a que merece convicção -- até que esse mesmo consenso evolua e traga uma melhor.
Não que o consenso seja infalível. Mas alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias, lembra o autor, e pondera que afirmar que o consenso de milhares de especialistas que estudam "X" está errado, e exatamente sobre "X", é talvez a mais extraordinária alegação possível, logo deveria vir acompanhada de evidência contundente.
A segunda parte do livro trata de vieses cognitivos, falácias argumentativas e, a partir daí, mergulha nos meios e técnicas de fabricação de controvérsias científicas, explicando como essa indústria se alimenta desses vieses e falácias. Harker aponta que manter o público imaginando que existe uma polêmica entre especialistas, quando na verdade o que existe é uma virtual unanimidade, é algo que requer esforço, deliberação e dinheiro. Ele então aponta o que considera as três "marcas" de uma controvérsia fabricada, com a ressalva de que essas marcas são mais indícios do que provas cabais. Ainda assim, vale a pena repeti-las aqui:
Grupo interessado: alguém geralmente tem algo a ganhar com a negação do consenso científico, seja dinheiro, prestígio ou a mera manutenção de uma visão de mundo incompatível com a ciência. Harker adverte que o indício do "grupo interessado" pode degenerar facilmente para a falácia ad hominem, em que a crítica ao argumentador é tomada como crítica ao argumento, e pede cautela em seu uso.
Argumentação exclusivamente negativa: uma alternativa legítima ao consenso científico deve, espera-se, ser construída a partir de um conjunto de observações e experimentos originais, e oferecer uma teoria capaz de dar conta dessas observações e experimentos. Em resumo, alternativas legítimas são propositivas. Já uma falsa alternativa -- uma controvérsia manufaturada -- raramente propõe algo, limitando-se a citar anomalias (reais ou fabricadas) no corpo experimental preexistente e falhas explicativas (mais uma vez, reais ou fabricadas) no corpo da teoria reinante.
Aqui, Harker retoma o princípio de que incerteza e convicção não são mutuamente excludentes. Toda teoria possui uma "superfície de contato", uma zona-limite onde entra em choque com dados que não é imediatamente capaz de absorver, detalhes que ainda não consegue explicar de modo satisfatório, irregularidades e incertezas. É nessa zona de contato que a teoria encontra material para evoluir, refinar-se -- e, sim, o impacto acumulado das anomalias que residem ali pode até levar a teoria a, um dia, sucumbir. Mas simplesmente apontar a presença dessa região não prova nada: ela é parte normal da ciência.
Apelo à opinião pública, não aos pares: no curso normal dos eventos, um especialista que discorda honestamente de outros especialistas apresenta suas discordâncias e argumentos na literatura técnica, não no Jornal da Band ou no Programa do Jô. O apelo direto à mídia popular é um forte indicador de que a única argumentação à disposição dos promotores da controvérsia é do tipo negativo, ou de que ela não resistiria por cinco minutos à análise de uma audiência não-leiga.
Harker fecha o livro com uma análise de algumas polêmicas fabricadas: a que nega o aquecimento global antropogênico, a do design inteligente e as controvérsias de saúde pública envolvendo transgênicos, vacinas e aids.
Em minha humilde opinião, Creating Scientific Controversies representa uma adição importante à bibliografia não só de cursos de introdução á filosofia da ciência, mas também de qualquer curso sobre divulgação e comunicação científica e, também, para jornalistas. Porque uma controvérsia fabricada é, fundamentalmente, um fracasso do jornalismo . Pior, é o tipo de fracasso do qual jornalistas desavisados, muitas vezes, gostam de se gabar, porque ficam com a falsa impressão de que estão dando voz aos hereges, de que estão cumprindo seu papel de revelar a polissemia da sociedade, ou alguma outra bobagem do tipo.
Abordo vários desses pontos no meu livro sobre o Criacionismo.
ResponderExcluirhttps://drive.google.com/file/d/0B53350WTR-znZDM3Mjk1ZWItNzA3Yy00MDRlLTllZTYtZWIyMTcwMWQ3MzA4/view?usp=sharing
---
[]s,
Roberto Takata