A Lição de Tales para escritores



Tales de Mileto (624-546 AEC) é tradicionalmente considerado o primeiro "cientista" do Ocidente: ele teria sido o primeiro sábio a tentar explicar os fenômenos da natureza nos termos da natureza, sem apelar para a linguagem da religião e do mito. Também teria sido o primeiro a prever com sucesso um eclipse solar. Era um homem adiante de seu tempo e, sob muitos aspectos, até do nosso.

Além de proto-cientista, no entanto, Tales também foi um observador arguto da natureza humana, e um sujeito com um ótimo senso de ironia. De acordo com o biógrafo Diógenes Laércio, certa vez perguntaram a Tales o que teria surgido primeiro, o dia ou a noite, ao que ele respondeu: "A noite, que veio um dia antes".

Suas respostas epigramáticas mais famosas são as que deu à questão sobre qual a coisa mais difícil do mundo ("conhecer-se a si mesmo")  e a mais fácil ("dar conselhos aos outros"). Incapaz de olhar com clareza para o próprio umbigo, o ser humano ainda assim se sente perfeitamente apto a dizer aos outros como conduzir suas vidas.

Sempre me lembro dessa lição de Tales quando alguém me pede conselhos sobre escrita -- não para dar palpite sobre se a frase tal ficou boa, ou qual a regência do verbo "assistir", mas escrita num sentido mais amplo: qual o melhor processo para criar uma história, se vale a pena fazer um curso de escrita criativa, ler livros sobre escrita criativa, contratar um coach, se existe um caminho das pedras para ser publicado e, em em linhas mais gerais, como se faz para ser um escritor.

A primeira coisa que me ocorre nessas horas é, mas você tem certeza de que está falando com a pessoa certa? Meus direitos autorais ainda não me permitiram comprar uma mansão no Havaí, e minha reputação ainda não me pôs na capa de nenhum suplemento cultural. Não prefere procurar alguém mais qualificado? Se soubesse como se faz para ser um escritor de sucesso, eu estaria em Maui tomando piñas coladas, não em Jundiaí respondendo ao seu e-mail.

Ao mesmo tempo, percebo, via redes sociais, que há uma pequena indústria incipiente que busca servir a essas pessoas (ou servir-se delas)  -- servir às pessoas (ou alimentar-se das pessoas) que querem conselhos para serem escritores. Confesso que sinto dificuldade em ver isso com bons olhos, principalmente quando os mercadores de conselhos começam a emular a linguagem e as técnicas da indústria de autoajuda e do chamado "empreendedorismo de palco".

Talvez por conta de meu longo envolvimento com o movimento cético, principalmente minhas pesquisas em torno dos chamados feel-good schemes -- palestras motivacionais, cursos, seminários, etc., que fazem a pessoa se sentir melhor, "empoderada", por alguns dias, mas que não deixam benefícios duradouros, não resolvem o que se propõem a resolver, não produzem mudanças reais mensuráveis -- tenho uma predisposição a olhar para essas coisas com um pé atrás.

Em sua reportagem-denúncia sobre a indústria de autoajuda, SHAM, o jornalista Steve Salerno cita uma pesquisa que conclui que a pessoa que tem maior probabilidade de comprar um livro do tipo é alguém que comprou outro livro do mesmo tipo nos últimos dezoito meses.

Salerno aponta a contradição implícita aí: "muitos desses livros se propõem a resolver ou amenizar um problema. Se o que vendem funcionasse (...) não seria de se esperar que a pessoa precisasse de ainda mais ajuda sobre o mesmo assunto, e não repetidas vezes". Ele conclui que, se os leitores precisam renovar suas doses de "ajuda" a cada ano e meio, isso quer dizer que a "ajuda" não é real, mas uma ilusão que requer sustentação contínua para se manter.

É óbvio que essa minha desconfiança pode ser totalmente (ou parcialmente) infundada. Existem por aí instrutores com experiências valiosas a compartilhar, gente culta que pode lhe apresentar autores preciosos e ideias inusitadas; e nunca se sabe quando um macete desenvolvido por outro autor poderá ajudar a resolver seu problema narrativo específico. Como disse Joseph Pulitzer quando foram tirar sarro dele por criar uma faculdade de Jornalismo, lá em 1912, a única coisa que todo mundo nasce sendo é ignorante.

Mas, se com toda a ironia da Lição de Tales ainda em mente, você me permitir dar três breves conselhos, aqui vão eles.

Primeiro, fuja de quem tentar lhe vender a Falácia do Sobrevivente, a falsa noção de que o caminho para o sucesso é descobrir o que os bem-sucedidos têm em comum: o fato de os livros mais vendidos da década terem todos bruxos, dragões e vampiros na capa não significa que bruxos, dragões e vampiros são o caminho certo das piñas coladas em Maui. Antes de concluir isso, é preciso olhar com sobriedade para o tanto de bruxos , vampiros e dragões nas pilhas de encalhe.

Segundo, fuja de quem tentar lhe vender fórmulas -- quaisquer fórmulas. Seja a do "primeiro parágrafo matador", a da "jornada do herói", a da "estrutura em três atos" (ou sete, ou nove, ou noventa e cinco). Se alguém lhe disser que é essencial que, ao final do segundo ato, seu herói esteja pendurado pelos polegares sobre um poço de tubarões radioativos, peça seu dinheiro de volta. E fuja. Se quiser uma fórmula para seguir, use o master-plot de Lester Dent. É grátis, é divertido e faz tanto sentido quanto todo o resto.

Terceiro, enfrente a maior dificuldade do mundo -- conhecer-se a si mesmo. É desse enfrentamento, projetado em personagens e situações, que nascem as melhores histórias. Todo o resto é perfumaria e efeitos especiais.

Comentários

  1. Li este post com um sorriso de Monalisa no canto da boca, você já deve imaginar o porquê, dado nossa troca de emails recente. Sou fã de Tales, justamente porque tenho esta veia prática, aplicada, epistemé platônica, mas techné talesiana. Sua citação deste filósofo meio que explica, para mim ao menos, por que você é procurado por escritores aspirantes para dar conselhos: você não se coloca como um escritor de sucesso e tenta vender fórmulas. Você simplesmente escreve , as pessoas acham, gostam, se identificam e daí te abordam com perguntas, já que o custo de se perguntar algo para alguém hoje é zero. A assimetria da nossa era de facilidades de comunicação chegou a tal ponto que a única perda possível que alguém tem ao indagar algum "ídolo" é receber um NÃO (ou ser ignorado). Já o ganho é infinito, caso o "ídolo" for com a sua cara.

    Eu imagino, e o seu último conselho dá esta pista, que você escreva pelo mesmo motivo que eu o faço insistentemente, quer sejam papers acadêmicos, artigos no Deviante ou textos ficcionais: necessidade de escrever, urgência de colocar no papel as ideias malucas que ficam voando na cabeça, para que ao lê-las novamente, fique-se em paz consigo mesmo e vire uma pessoa melhor. Mais barato que fazer análise, com certeza, e talvez, mais efetivo, mas aí deixo a controvérsia em aberto :-).

    Duas frases do meu guru (ehehehe..ironia talesiana) Nassim N. Taleb para fechar:

    "Avoid taking advice from someone who gives advice for a living"

    "The doer wins by doing, not convincing"

    Abraço!

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