Ciência 1, 2, 3



Em seu livro de ensaios Pluto's Republic, o ganhador do Nobel de Medicina Peter Medawar impacienta-se, seguidas vezes -- preservando sempre aquela elegância ferina que os melhores ensaístas britânicos são mestres em manter, quando exasperados -- com a facilidade com que o que chamaríamos de "pessoal de Humanas" faz pouco caso do que, para Medawar, é a característica que distingue as ciências de todos os outros esforços humanos para fazer sentido do mundo: a correspondência com a realidade.

Medawar gasta alguns parágrafos, por exemplo, criticando o antropólogo francês Claude Levi-Strauss. Quando Levi-Strauss escreve, em O Pensamento Selvagem, que para os povos siberianos que mantêm o mito de que bico de pica-pau cura dor de dente é, de fato, irrelevante se o bico realiza mesmo a cura -- que o importante é que, por meio do mito, "alguma ordem seja introduzida no mundo" -- Medawar pergunta se esse ponto de vista é tão agradável, para o pobre siberiano com um abcesso dentário, quanto parece ser para a vaidade intelectual do antropólogo que o formula.

Esse descompasso entre as Ciências e as Humanidades chegou ao clímax nas chamadas science wars do século passado, quando cientistas, principalmente biólogos e físicos, insurgiram-se contra a opinião, propagada por algumas figuras radicais da sociologia e da filosofia, de que a ciência poderia ser entendida meramente como o produto da atividade social dos cientistas -- uma "narrativa" tão (ou tão pouco) válida quanto qualquer outra tentativa de introduzir ordem no mundo, incluindo horóscopos ou mitos siberianos.

As science wars deixaram cicatrizes, e seus guerreiros mais radicais fizeram discípulos dos dois lados da trincheira. Muitos desses discípulos, principalmente nas Humanidades, não tomaram conhecimento das retratações e dos apelos á moderação feitos, mais tarde, pelos mestres (por exemplo, esta entrevista de Bruno Latour, em que o sociólogo renega o relativismo pós-moderno e atribui suas críticas mais exaltadas à ciência a "entusiasmo juvenil"), ou Paul Feyerabend, em 1992, escrevendo em seu  ensaio Atoms and Consciousness que a ciência produz "resultados sólidos" e que as pessoas que usam a linguagem dos misticismo quântico "esquecem as predições e a tecnologia".

Mas tudo isso aí em cima foi só uma volta para chegar ao título desta postagem. meu ponto aqui é que quando usamos a palavra "ciência" estamos quase sempre, e de modo implícito, misturando três coisas: (1) um processo de investigação da realidade, baseado em métodos, como o uso de controles e análises estatísticas, que visam reduzir ao máximo a influência de preconcepções e vieses cognitivos na produção de seus resultados; (2) as afirmações, teorias e explicações geradas por esse processo; (3) as instituições, pessoas e estruturas encarregadas de aplicar (1) para obter (2).

Claro, cada uma dessas "coisas" é passível de crítica: talvez os métodos não sejam tão bons quanto imaginamos (a crise do valor-p mostra bem esse caso); ou algumas alegações e teorias podem estar erradas; ou as instituições e pessoas podem estar mal organizadas, cometendo erros, ou agindo sob estruturas de incentivos inadequadas. Uma coisa que chama atenção é que críticas à "Ciência1" e à "Ciência2" geralmente nascem e são melhor administradas interna corporis. 

Você não vê debates públicos acirrados sobre qual a melhor forma de avaliar a relevância de um resultado, se significância estatística ou tamanho do efeito, ou se a teoria das cordas merece mesmo ser chamada de "teoria". Às vezes algo de "Ciência2" vira debate público (como a questão do aquecimento globa, por exemplo), mas a palavra final acaba sendo dos cientistas.
 
Já as críticas à "Ciência3" são muito públicas e abertas, e faz sentido que sejam: afinal, se as instituições que cuidam de produzir conhecimento funcionam mal, isso é um problema político que diz respeito a toda a sociedade. O que, a meu ver, causou toda a animosidade que resultou nas science wars, e que ainda hoje incomoda o cientista que tem de encarar o sorrisinho maroto do cara do Humanas que acha que "entende" ciência porque leu Feyerabend ou Latour, é o uso da crítica à "Ciência3" para impugnar a "Ciência1" e a "Ciência2".

Claro, alguma contaminação é inevitável: são os humanos em "C3" que escolhem e usam as ferramentas de "C1" para  produzir "C2". Se "C3" está quebrado, então, em princípio, a cadeia torna-se suspeita. 

Mas essa conclusão ignora todo o processo histórico de desenvolvimento de "C1" e "C2", processo que se deu em contato constante com a realidade da natureza e sob regras de escrutínio mútuo e transparência: voltando às ponderações de Medawar, para a ciência não basta produzir uma narrativa verossímil que faça sentido: ela também tem de sobreviver ao choque de ser testada, sob a forma de predições e tecnologias. Se eu digo que eletricidade flui de meus dedos quando penso num mantra, a atitude científica é ver se consigo fazer girar um motorzinho, só me concentrando e diante de testemunhas. 

Essa restrição reduz sobremaneira o dano que um "C3", ainda que moderadamente disfuncional, pode causar, ao reduzir os graus de liberdade na escolha de "C1" e na produção de "C2". O fato de um cientista ser arrogante não significa que ele esteja errado. E um cientista ser arrogante e estar errado não significa que a ciência -- como método ou corpo de conhecimento -- esteja. Mais importante, não significa que as alternativas apresentadas (magia, intuição, tradição, etc.) tenham mais chance de estar certas.

Comentários

  1. A união de todas as ciências formam a verdadeira ciência.

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  2. O que Hieron falaria dessa discussão toda? Ou melhor ainda, o que ele diria sobre o relativismo pós-moderno?

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