Variedades da experiência placeba



Muito já se lamentou, de ontem para hoje nas redes sociais, sobre a decisão do Ministério da Saúde de ampliar a oferta das chamadas "terapias complementares e alternativas" no Sistema Único de Saúde (SUS). Chamou-se atenção, por exemplo, para o fato de que países com sistemas de saúde pública funcionais, como o Reino Unido,  vêm excluindo essas terapias de seu rol de procedimentos, com o objetivo de otimizar o gasto público, e o SUS não tem exatamente dinheiro para queimar em bobagem; e de que não há evidência científica de que essas terapias funcionem melhor do que um placebo (isto é, do que mentir para o paciente, dizendo que o copo de água que ele tomou durante a consulta era remédio).

É sobre este segundo ponto que eu gostaria de me debruçar no momento. Há algum tempo (pelo menos desde as "Homeopathy Wars" do Jornal da USP, no ano passado) que os proponentes de terapias alternativas vêm respondendo a essa acusação com um "Mas nós temos evidências!"

Esta é uma postura retórica relativamente nova: na primeira vez que entrevistei um homeopata (uns 28 anos atrás, ainda como estudante de jornalismo) ouvi queixas contra o "imperialismo metodológico" da "medicina alopática". O raciocínio geral era o do que coisas como testes clínicos e validade estatística eram imposições cientificistas da cultura ocidental (patriarcal-branca-heterossexual, blá-blá-blá e etc.), e que as práticas alternativas eram sutis demais, ou pairavam acima dessas preocupações mundanas, para que seu poder fosse captado por instrumentos são grosseiros.

De lá para cá, no entanto, alguma coisa mudou -- talvez mais e mais pessoas tenham se dado conta de que o papo da "sutiliza" soava demais como charlatanismo --, e diversas terapias alternativas passaram a buscar respeitabilidade científica ou, na impossibilidade disso, uma imitação capaz de enganar quem olhasse de longe e sem muita atenção, num efeito que, não raro, é mais do que constrangedor.

Criou-se, a partir daí, uma próspera indústria do que eu chamo de "ciência-vagem-do-espaço". No livro de ficção científica The Body Snatchers (filmado diversas vezes), pessoas são insidiosamente substituídas por réplicas gestadas em vagens espaciais. Essas réplicas têm a aparência e as memórias do ser humano original, mas nada de sua essência: qualquer um que conheça intimamente a pessoa substituída logo se dá conta de que está lidando com um impostor.

A ciência-vagem-do-espaço é assim: tem cara de ciência, às vezes até rende um título de doutor ou uma publicação com peer-review, mas qualquer análise mais preocupada com a substância que com a aparência logo a revela pelo que realmente é: um exercício de vacuidade, desperdício de recursos e demonstração de fé.

Por causa disso, hoje em dia não se pode mais dizer que não existem estudos apontando a eficácia de coisas como homeopatia ou imposição das mãos (ou mesmo prece). Eles existem! Para o público em geral, que só tem tempo de ver essas coisas de longe e sem muita atenção, a vagem do espaço passa pela coisa real. Para quem trabalha com divulgação científica, esse estado de coisas cria uma camada extra de complexidade, que pode ser resolvida de uma de duas formas.

A primeira é lembrar que o fato de haver um punhado de estudos dizendo que X funciona não anula o fato de que existem centenas ou milhares de estudos mostrando que X é uma besteira. O consenso da comunidade científica -- a preponderância da evidência -- vale mais, em princípio, que qualquer paper ou tese individual. Isso não quer dizer que a ciência seja uma ortodoxia estática: isso quer dizer que alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias.

A segunda é explicar porque a ciência-vagem não é ciência de verdade. Isso, no entanto, dá muito trabalho: assim como as famílias infelizes de Tostói, cada estudo ruim é ruim à sua maneira: ele pode ter sido mal concebido, ou mal executado; a análise estatística pode ter sido inadequada; ele pode se formalmente correto, mas trazer um resultado falso positivo por puro azar.

Felizmente, a maior parte dos "estudos" que parecem validar terapias alternativas cai em uma de três categorias de falácia científica. Conhecendo as categorias, não é difícil pegar o fio da meada e achar o erro. São elas:

Tomar o exploratório por confirmatório: um "estudo exploratório" tem como objetivo apontar rumos para pesquisa -- é o equivalente de dizer "ei, pessoal, parece que tem algo interessante aqui". Por sua própria natureza, tem critérios de qualidade relativamente frouxos -- é como jogar uma rede no mar só para ver o que ela traz. O estudo exploratório apenas sugere o fenômeno; estudos confirmatórios, mais rigorosos, depois são necessários para ver se a vereda aberta realmente leva a algum lugar. A pesquisa em medicina alternativa é feita quase que 100% de estudos exploratórios, cuja significância é sistematicamente exagerada pelos defensores de tais práticas.

Pseudo-controles: o padrão máximo de evidência, em pesquisa médica, é o representado por estudos clínicos duplo-cegos, randomizados e controlados por placebo. Isso quer dizer que você trabalha com dois grupos, selecionados ao acaso dentro da população de interesse ("randomizado"), um dos quais é o grupo que vai receber o tratamento em teste e o outro, um produto inerte ("placebo"), e que idealmente nem os voluntários, nem as pessoas encarregadas de administrar o tratamento/placebo sabem qual grupo é qual ("duplo-cego").

Há várias razões, tanto na medicina alternativa quanto da tradicional, que muitas vezes impedem que esse design seja implementado de modo completo. Mas pelo menos a presença de um grupo de controle é, geralmente, necessária para que o trabalho tenha algum verniz de credibilidade. Praticantes de terapias alternativas, no entanto, são hábeis em tornar os controles, na prática, irrelevantes: transformá-los em vagens do espaço.

Estudo recente sobre reiki, realizado no Brasil, por exemplo, expôs o grupo de tratamento a "terapeutas"  formados e com anos de experiência na prática; e o grupo de controle, a pessoas sem nenhuma familiaridade com o reiki e sem experiência terapêutica. O grupo de tratamento terminou se sentindo melhor, o que foi interpretado como um sucesso do reiki.

Uma interpretação mais lúcida seria a de que um placebo aplicado por profissionais é mais eficaz do que um aplicado por amadores: o controle usado foi absolutamente inadequado!

Nem todos os placebos são criados iguais. Sabe-se, por exemplo, que uma pílula de açúcar cara causa mais "benefícios" que uma barata. Estudo publicado no British Medical Journal em 2008 já apontava que o efeito placebo é aditivo: "Os fatores que contribuem para o efeito placebo podem ser progressivamente combinados, de um modo que se assemelha a uma escala graduada de aumento da dose", diz o trabalho. "O componente mais robusto é a relação paciente-terapeuta".

Comparação A+B versus A: Muitos estudos sobre terapias alternativas comparam os resultados obtidos por pacientes que seguem um curso de tratamento tradicional (A) com os que seguem um tratamento tradicional acompanhado de uma terapia alternativa (A+B), e concluem que  o grupo A+B se saiu melhor. Dado o caráter aditivo do efeito placebo, no entanto, esse tipo de resultado não prova nada: a simples presença de "B", qualquer que seja "B", já deveria produzir algum benefício, por puro conforto psicológico.

Essas são são as únicas manobras usadas, mas aprender a reconhecê-las pode ajudar a avaliar melhor os papers que seus amigos entusiastas da homeopatia ou dos florais de Bach andam colando na sua timeline.

Mudando de assunto, queria fechar comentando duas coisas relacionadas, de certa forma, ao exposto acima.

Uma delas é o impacto indireto, e potencialmente trágico, que a decisão do Ministério da Saúde pode ter sobre a saúde pública. É o seguinte: pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Europa mostram que algumas práticas alternativas -- em especial, mas não só, a quiropraxia -- são parte de uma cultura hostil a diversos tratamentos e procedimentos médicos cientificamente estabelecidos, como vacinas, quimioterapia e medicamentos psiquiátricos. O risco de o SUS passar a subvencionar profissionais que aconselharão seus pacientes a ignorar diretivas do próprio SUS não deveria ser desprezado.

A segunda é a chocante subserviência da imprensa ao discurso oficial. Praticamente todos os sites e jornais que vi trazem uma tabela -- que, só posso crer, foi divulgada pelo governo -- listando, de forma acrítica, os "benefícios" das terapias integradas ao SUS. Ninguém nem se deu ao trabalho se inserir ali um "suposto", um "alegado".  O exemplo abaixo vem do Estadão, mas vi igual no G1, por exemplo:


Por favor, colegas. Vocês são melhores do que isso.

Comentários

  1. [...]
    "A segunda é a chocante subserviência da imprensa ao discurso oficial."[...]

    O que esperar dos jornais que diariamente publicam previsões astrológicas e quando muito têm uma coluna de ciência semanal.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Essa nova estratégia dos pseudocientistas não é diferente dos criacionistas/intelligent designers. Eles até criaram uma expressão hilária, o "criacionismo científico". Acontece que praticamente tudo o que funciona na nossa sociedade, incluindo o dispositivo que você está usando para ler esse texto é baseado em ciência. O que esse pessoal não consegue ou não quer entender é que a ciência só é ciência porque está acima de tudo comprometida com a realidade e com os resultados da experimentação. Não existe uma teoria que consiga modelar os efeitos da homeopatia, por exemplo, porque os efeitos da homeopatia nunca são maiores que o placebo.
    O que mais me chamou a atenção nessa decisão de ontem é que até ela eu associava a adoção de terapias baseadas em pseudociência no sistema público brasileiro a um certo tipo de militante de esquerda que associa a ciência ao capitalismo e portanto negá-la é uma atitude política, temperada por teorias da conspiração e o escambau. Com o advento de prefeituras e governos de esquerda esses militantes passaram a tomar decisões favoráveis a essas terapias, sem se preocupar com o custo para o contribuinte. Ledo engano meu. A opção pela pseudociência vai muito além de escolhas ideológicas. Basta ser um pouco tapado.

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  4. "Estudo recente sobre reiki, realizado no Brasil"

    Que estudo foi esse?

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    Respostas
    1. Efeitos da prática do Reiki sobre aspectos psicofisiológicos e de qualidade de vida de idosos com sintomas de estresse:estudo placebo e randomizado. / Ricardo Monezi Julião de Oliveira. -- São Paulo, 2013. xxiii, 165p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia. Título em inglês: Effects of Reiki practice on psychophysiological and quality of life aspects of elderly patients with stress symptoms: a randomized placebo study. 1. Toque terapêutico. 2. Idoso. 3. Estresse. 4.Terapi

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    2. Obrigado, pela referencia.

      "Uma interpretação mais lúcida seria a de que um placebo aplicado por profissionais é mais eficaz do que um aplicado por amadores: o controle usado foi absolutamente inadequado!"

      Poderia elucidar melhor esse paragrafo?
      Por que os sr. acha que o efeito placebo seria mais potencializado pelos profissionais do que os amadores?

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    3. Porque os profissionais têm anos de prática em fazer seus pacientes se sentirem confortáveis e relaxados, além de terem a postura e a autoconfiança de terapeutas experientes, algo que o paciente/voluntário ê capaz de captar na linguagem corporal, tom de voz, etc. como explico na sequência da postagem, o efeito placebo é aditivo — ele pode ser intensificado por uma série de fatores, sendo o principal a relação que se estabelece entre paciente e terapeuta

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  5. Certo, muito obrigado pela resposta.
    Precisava ter certeza que estávamos a falar da mesma coisa...
    De fato o Ricardo Monezi cometeu um erro aberrante, no design de seu estudo, ao permitir esse contato dos impositores com os voluntários.

    No entanto gostaria de chamar a atenção para outro estudo que felizmente não cometeu tal erro. Realizado por Daniel P. Wirth, que para controlar essa variável, construiu um recinto, onde através de buracos, era permitido apenas a passagem do braços. Sem contato visual ou sonoro com o impositor, mitigando a hipótese de sugestão.
    A conclusão do experimento:

    "In conclusion, the mean wound surface area for treatment subjects in
    comparison to the mean wound surface area for nontreatment subjects
    was significantly smaller for both Day 8 and Day 16. The normal rate of
    wound healing was established by the non treatment control group and
    compared to the rate of wound healing in the treatment group. The use
    of a double-blind deSign, as well as a specially modified door to isolate
    the IT practitioner from the subjects, added confidence to the results by
    precluding the role of suggestion, expectation, and the placebo effect.
    Due to the exclusion of these factors, and the elimination of contact or
    communication between the IT practitioner and subjects, it is indicated
    that such social and physical factors are not necessary prerequisites for
    an accelerated healing effect to occur.
    This research design eliminated the influence of factors which most often
    confound the results of healing studies. It is concluded, therefore, that
    the significant results of the present study indicate that NCTT is an
    effective healing modality on full-thickness human dermal wounds. "

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    Respostas
    1. Oi, Hilton! Tal como descrito, o estudo é realmente sugestivo. A questão é se ele aconteceu tal como descrito, ou até mesmo se aconteceu de alguma forma. Não só Wirth é um estelionatário condenado ( https://www.quackwatch.org/11Ind/wirthindictment.html ) como a própria comunidade de pesquisa em terapias alternativas tem sérias dúvidas sobre a integridade de seu trabalho. Uma carta publicada em 2005 em "THE JOURNAL OF ALTERNATIVE AND COMPLEMENTARY MEDICINE" aponta, entre outros problemas:

      • His lack of appropriate collegial accessibility and professional
      communication

      • The absence of adequate documentation that the wound
      healing studies took place as described

      • Numerous unanswered questions regarding the actual nature
      of the listed coauthors’ involvement in these studies

      • The possibility that these foundational studies are without
      scientific basis.

      A carta tem DOI: https://doi.org/10.1089/acm.2005.11.949

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    2. Não estava apar disso...
      Obrigado pelas informações.

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