Notícias falsas: mais complicado do que parece
Uma capacidade fantástica do ser humano é de pegar o que poderia ser um debate rico, complexo e produtivo e imediatamente reduzi-lo a meia-dúzia de clichês rasteiros. A questão das notícias falsas/fake news, por exemplo, que poderia ter dado margem a uma discussão séria sobre meios de comunicação, uso de fontes e credibilidade, virou basicamente uma estratégia de marketing da mídia corporativa -- "confie em nós", dizem os jornalões, as grandes redes de TV e rádio em suas campanhas de conscientização sobre fake news -- "e tudo vai ficar bem".
Mas aí a gente se lembra de que o Estadão engoliu a lorota do Jogo da Baleia Azul com isca, anzol e linha; que a Folha de S. Paulo endossou teorias de conspiração malucas sobre o 11 de setembro; que a CBN fez um programa cantando os loas da "medicina" ayurvédica; que a febre nacional da fosfoetanolamina começou com uma reportagem de afiliada da Globo, e é compreensível que fiquemos desconfiados e desconsolados.
A questão torna-se ainda mais complexa porque a grande mídia corporativa não está de todo errada: jornalismo sério custa dinheiro, e a qualidade média, técnica e ética, do material produzido pelas grandes empresas do ramo é bem maior do que seus detratores, à direita e à esquerda, querem fazer crer. Para cada lorota maluca que sai sobre saúde ou ciência, há dezenas de outras matérias bem apuradas e escritas, produzidas por profissionais diligentes e conscienciosos.
Alguém poderia até me acusar de cherry picking -- de ter escolhido os exemplos acima a dedo, só para causar má impressão, ocultando o bom trabalho feito, rotineiramente, pela maior parte dos jornalistas brasileiros.
O problema é que os exemplos citados são, a meu ver, sintomas de vícios sistemáticos do meio jornalístico, vícios que, se não forem corrigidos, podem acabar destruindo até mesmo a credibilidade das campanhas por mais respeito à credibilidade. E me preocupa que o sequestro da questão das notícias falsas pelos departamentos de marketing tenha instaurado um senso de complacência no meio: a partir do momento em que você se vê como o herói que trava o Bom Combate, a autocrítica, um exercício nunca exatamente agradável, deixa, de fato, de ser bem-vinda.
Falei em "vícios sistemáticos". Quais seriam eles? Cito quatro, que na verdade podem ser vistos como aspectos de um mesmo problema mais abrangente (e, daí, sistêmico):
Leniência com o meramente declaratório: tratar como notícia não um fato apurado e confirmado, mas algo que alguém diz que é um fato. Não que declarações não possam ser, em si, notícias, mas a imprensa brasileira adotou uma postura quase letárgica diante de acusações ou alegações bombásticas feitas por autoridades, celebridades e outras figuras públicas, reproduzindo-as de modo quase automático e acrítico.
Esconder-se na barra da saia da autoridade: quando a leniência com o declaratório leva à publicação de bobagens, em vez de reconhecer a falha do modelo, corre-se para a barra da saia da autoridade: "ah, mas foi o delegado quem disse"; "ah, mas foi o professor quem disse"; "ah, mas o documento dizia"; "não foi o jornal que errou, reproduzimos fielmente o que o entrevistado disse". Essa manobra, ao mesmo tempo em que terceiriza a responsabilidade de checar os próprios fatos para a fonte, confere a ela credibilidade intrínseca de ter "saído no jornal". Foi esse ponto cego que lançou o senador Joseph McCarthy à fama.
Personagismo: todo jornalismo busca ser, em alguma medida, dramático, e nada é mais dramático que a palavra e a luta de um indivíduo. Daí, a queda do jornalismo por personagens -- o atleta, a mãe desesperada, o pai amoroso, a grande empresária. O problema é que casos individuais podem não ser representativos, e geralmente carregam uma força retórica desproporcional. O leitor que encontra uma longa entrevista com um médico que acha que vacinas são perigosas pode não obter o esclarecimento necessário a partir do parágrafo solitário que diz que os pontos de vista expressados são "controversos" ou "não refletem a recomendação da maioria dos médicos".
Controversismo: controvérsias reais -- questões que estão realmente em aberto, sobre as quais os melhores estudiosos não chegam a um acordo -- existem, mas muitas vezes o discurso jornalístico assume a forma de "esse cara diz isso, aquele cara diz aquilo, quem poderá saber quem está certo?" simplesmente porque é mais fácil e menos arriscado do que levantar os fatos e reconhecer que um lado é mais certo que o outro.
Um dado curioso é o de que os serviços de checagem de fatos geralmente atacam esses problemas, principalmente apontando erros e contradições em conteúdo declaratório. Mas essas checagens são band-aids -- cobrem feridas abertas. Por que o autor da declaração não foi contestado na matéria original? De todas as pessoas que viram a declaração errada, quantas terão acesso à coluna de checagem?
Também é importante notar que os vícios que cito acima podem ser vistos como perversões de preocupações legítimas -- em evitar arrogância, em fugir de simplificações exageradas, em demonstrar relevância, em dar voz a todas as partes interessadas na questão que está sendo abordada. Mas mecanismos criados para a defesa de princípios não podem se converter em fins em si mesmos, nem se transformar em pretexto para trabalhos que podem até ser tecnicamente impecáveis mas que, no fim, passam informação falsa.
Este é o outro front, aparentemente esquecido, da guerra pela credibilidade jornalística e contra as fake news.
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