Epistemologias "alternativas" e saúde



A recente publicação, em O Estado de S. Paulo, de um artigo apontando a incoerência da introdução de práticas ditas "alternativas" -- isto é, carentes de base científica -- no Sistema Único de Saúde (SUS) provocou uma previsível maré de objeções, a maioria das quais, quando analisadas, acaba se enquadrando em um de três campos: "ei, mas nós temos base científica"; "terapias com base científica também não são isso tudo";  "base científica é um critério ruim, porque se fecha a epistemologias alternativas".

Da primeira objeção já tratei algumas vezes (por exemplo, aqui e aqui), então vou deixá-la de lado, desta vez. Da segunda, diga-se que confunde critério necessário com suficiente. Não é porque nem todo mundo que tem duas pernas consegue correr os 100 metros em menos de dez segundos que ter duas pernas deixa de ser uma vantagem considerável para quem se dispõe disputar os 100 metros rasos.

Do mesmo modo, não é porque nem toda terapia que passa pelos testes científicos recomendados funciona bem que passar por esses testes deixa de ser um indicador precioso de quais terapias merecem ser levadas a sério (e, mais crucialmente, merecem entrar na disputa por verbas públicas escassas). E, enfim, essas questões de suficiência, necessidade e merecimento me trazem ao ponto das tais epistemologias alternativas.

Acho que já contei essa história antes, mas a primeira vez que entrevistei um professor de faculdade de Medicina que também era homeopata -- mais de 25 anos e 30 quilos atrás -- ele se queixou do "imperialismo metodológico" da ciência tradicional. Esse foi meu primeiro contato, ainda que indireto, com a ideia que, depois, viria a conhecer como "epistemologia alternativa".

"Epistemologia" é o estudo da construção do conhecimento: como sabemos que sabemos aquilo que sabemos?  O ponto crucial é que os supostos efeitos benéficos de coisas como homeopatia, acupuntura, reiki e quetais tendem a desaparecer quando se realizam testes científicos; e quanto melhor a qualidade do teste, mais próximo de zero fica o efeito observado. A ideia, então, é que a "epistemologia" codificada nesses testes seria inadequada.

É como se um jogador de futebol que sempre leva cartão vermelho, quando o árbitro da partida é honesto, chegasse à conclusão de que o problema não são suas entradas violentas, são as regras do futebol. A "epistemologia" dos bons árbitros impede que nosso craque brilhe, então ele parte em busca de regras alternativas que valorizem seu talento.

Será que isso faz sentido? As regras do futebol são largamente arbitrárias, mas as do conhecimento científico, até onde sabemos, não. As leis da física, afinal, são as mesmas, não importa se você está jogando futebol association ou rúgbi. Mas vamos ver isso um pouco mais a fundo.

Em termos, digamos, sociais -- quando o "conhecimento" em questão não é uma coisa que está só na minha cabeça, mas algo que desejo comunicar ao mundo e que, espero, vai afetar o comportamento de outros primatas da tribo -- é interessante pensar em termos de "direitos epistêmicos": o que me dá o direito de esperar que alguém leve a sério o que estou dizendo?

Talvez eu diga as coisas com muita convicção. Talvez eu tenha lido aquilo num livro escrito por tribos nômades do Oriente Médio, 2500 anos atrás. Talvez eu tenha lido aquilo num livro escrito por um alemão excêntrico, 200 anos atrás. Talvez minha convicção nasça de uma forte experiência pessoal. Talvez eu tenha testemunhas e seguidores fanáticos prontos para jurar que estou dizendo a verdade. Talvez eu tenha uma tradição milenar ao meu lado? Ou, talvez, apenas talvez, eu tenha os resultados de testes bem conduzidos, submetidos à crítica dos especialistas e a rigorosa análise estatística?

Nenhuma das razões apresentadas no parágrafo acima é perfeita ou elimina de vez os riscos trazidos pela falibilidade humana. Mas apenas a última -- que exemplifica a "epistemologia tradicional" e o "imperialismo metodológico" de que alguns tanto se queixam -- se preocupa com esses riscos e os leva em conta. Todas as outras pressupõem algum tipo de infalibilidade intrínseca: seja do Livro, do Fundador, do Guru, da Massa, do Ego, da Tradição.

Em termos de saúde humana, a questão do direito epistêmico é especialmente crucial. O que me permite afirmar a alguém que está sofrendo que eu sei como reduzir ou eliminar seu sofrimento? Salvar sua vida? Reduzir a dor, salvar vidas, são promessas tremendas. Não devem ser feitas sem base, em bases insuficientes ou desnecessariamente precárias.

Quem invoca "epistemologias alternativas" está fazendo exatamente isso. Numa nota final, é interessante notar que essas mesmas pessoas tendem a acusar seus críticos de arrogância e falta de ética. Como se pôr experiências particulares, e intuições pessoais e tradições paroquiais acima do melhor conhecimento científico disponível já não fosse arrogante o suficiente. Como se fazer promessas sem base, promover desinformação que põe vidas em risco e consumir recursos públicos com fantasmagorias não fosse antiético.

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