O algoritmo na cabeça das pessoas


O Brasil é um dos cinco países que mais usa WhatsApp, e linchamentos motivados pela internet não são novidade por aqui, mas a imprensa nacional meio que vem ignorando a grande polêmica que cerca o aplicativo no mundo de língua inglesa -- a saber, a onda de linchamentos, na Índia, estimulada por boatos divulgados nessa rede. Jornais britânicos (aqui, aqui e aqui) e americanos (aqui) vêm cobrindo o assunto com atenção. E por um bom motivo: a tragédia indiana abre um novo capítulo no debate sobre "fake news", seus impactos e modos de ação.

Muitas das notícias publicadas falam de apelos das autoridades para que a rede, de alguma forma, coíba a circulação de boatos. Isso me parece fazer tanto sentido quanto pedir para as fábricas de motocicleta que façam algo para coibir o uso desses veículos em assaltos na saída de caixas eletrônicos, ou que as operadoras de telefonia façam algo para combater os trotes.

Afinal, diferente do Facebook, que aplica uma série de filtros e algoritmos ao conteúdo postado, e que cria "bolhas" de audiência com fins publicitários, o WhatsApp é neutro: ele mostra o que as pessoas põem nele, na ordem em que põem, e pronto. As "bolhas" do Zap são as que as próprias pessoas escolhem: família, amigos, colegas de trabalho. Não há um "algoritmo" para culpar.

Ou melhor, há: o algoritmo que habita a cabeça das pessoas -- a minha, a sua, a de todo mundo. Vivemos numa era populista, em que não é de bom tom sugerir que o cidadão comum, pacato trabalhador de bem, pai (ou mãe) de família, seja algo menos do que perfeito. Se há algo errado no mundo, a responsabilidade tem de estar em outro lugar. A crise de fake news homicidas no WhatsApp, no entanto, sugere algo diverso.

O cérebro humano contém uma série de atalhos que nos permitem formar opiniões e tomar decisões sem precisar pensar a fundo nos assuntos sobre os quais estamos opinando ou agindo. É uma questão de eficiência: se esses atalhos, mesmo conduzindo ao erro de tempos em tempos, forem bons o suficiente -- ou, ao menos, melhores do que ficar parado ponderando os prós e contras de fugir de um estouro de manada de elefantes -- eles serão preservados ao longo da evolução.

Um desses atalhos é o da conformidade: ele nos estimula a concordar com a opinião predominante no grupo humano em que estamos inseridos. Sendo o Homo sapiens um animal que existe em sociedade, muito do nosso aparato mental se desenvolveu no sentido de facilitar a relação com os demais membros da espécie: você não precisa ser o melhor caçador da tribo, se for simpático o bastante para que o caçador vá com a sua cara e tope dividir a gazela.Ser membro da igreja dominante é mais vantajoso, do ponto de vista social, do que ser o ateu da aldeia -- ou o herege.

Dois fatores importantes na modulação da conformidade são a proximidade e a credibilidade: pessoas que, por alguma razão, sentem-se próximas -- seja por laços familiares, culturais, de classe, etc. -- tendem a confiar -- acreditar -- mais umas nas outras do que em quem está distante, e a apresentar conformidades convergentes. Traduzindo isso para o mundo da boataria de redes sociais, é mais fácilnatural levar a sério o boato que chega com a chancela do celular da sua prima do que o desmentido que vem da nota oficial do governo.

Só que, na ecologia das fake news, o "fácil" e o "natural" são os vetores, as armas do inimigo. Não estou dizendo que é para parar de confiar nos amigos e nos parentes -- empreste dinheiro para o seu sobrinho abrir lá a pizzaria dele, por que não? -- mas pense duas vezes antes de passar adiante o que o namorado da sua tia põe no WhatsApp da família. Não é porque a fonte imediata da informação é, geralmente, confiável que a fonte original também era.

Estudiosos de folclore e de histerias coletivas conhecem alguns fatores que aparecem com frequência em ondas de pânico moral. Um gatilho comum é o do "perigo para as crianças". Seja o plástico da mamadeira, a baleia azul, a erotização das menininhas ou os palhaços da van, há algo de visceralmente assustador nas ameaças à infância. Se a ameaça envolve sequestro -- a separação forçada dos pais -- a execução sumária dos supostos responsáveis é uma forte possibilidade. De fato, os linchamentos na Índia (e no Brasil) foram motivados dessa forma.

Então, se uma pessoa que você confia lhe diz que um estranho de hábitos esquisitos está de olho nos seus filhos -- bem, seguro morreu de velho, certo? Esse era o poder da calúnia de sangue da Idade Média, e é o poder do pânico de WhatsApp, hoje.

É improvável que uma solução tecnológica, política ou burocrática surja para esse problema. Se houver solução possível, ela terá de passar por um processo complicado de reeducação cognitiva -- de realfabetização midiática. E afetiva: temos de nos convencer de que gostar de uma pessoa, ou respeitá-la, não nos obriga a acreditar em tudo o que ela diz.

Comentários

  1. Porcaria o sistema desse blog, que subverte o propósito do hipertexto criando links em palavras, ao que parece de maneira aleatória, para anúncios publicitários.

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