Cadê os homens de preto?
Semana passada, um grupo de cientistas baseado na Itália anunciou ter encontrado indício de que neutrinos -- partículas virtualmente sem massa e que praticamente não interagem com a matéria comum -- viajam mais rápido que a luz.
Não muito mais rápido, é verdade (uma diferença de 60 nanossegundos num trajeto de 730 km), mas, ei, é da velocidade da luz no vácuo que estamos falando aqui. O limite máximo do Universo. O parafuso que mantém nossa noção de realidade firme no lugar.
Suponho que praticamente todo mundo que já assistiu a um filme de Guerra nas Estrelas sabe que é impossível, em condições normais, viajar mais depressa que a luz.
Há razões práticas para isso -- é um fato comprovado que ao acelerar um corpo, aumentamos sua massa inercial, isto é, sua resistência à aceleração; e há motivos para acreditar que, à medida que a a velocidade do corpo se aproxima da velocidade da luz, essa resistência se aproxima de um valor infinito. Assim, o último passo da aceleração, digamos, o 0,00000000000000000000000001% que falta para alcançar a velocidade da luz, iria requerer um esforço infinito para se concretizar. Como não é possível realizar esforços infinitos, não é possível atingir (que se dirá superar) a velocidade da luz.
Essa razão prática, no entanto, não explica a bomba filosófica que uma violação do limite da velocidade da luz traz: essa violação tem o potencial de destruir de vez o significado de conceitos como "antes" e "depois", "causa" e "efeito".
Imagine, por exemplo, que uma pessoa do outro lado da sala jogue para você uma bola, e que a bola viaje mais depressa do que a luz. Isso quer dizer que a bola chegará às suas mãos antes que você a veja ser lançada: do seu ponto de vista, o efeito (a bola chegar) antecede a causa (o arremesso).
Você pode argumentar que se trata apenas de uma questão de ponto de vista. Que, na verdade, a bola foi arremessada antes de chegar. Certo, essa é a situação do ponto de vista do arremessador, mas por que o ponto de vista dele valeria mais que o seu?
Antes de Einstein aparecer com a teoria da relatividade restrita, em 1905, supunha-se que todos os eventos do Universo poderiam ser localizados, no tempo, de acordo com um padrão fixo e imutável. Uma espécie de relógio universal perfeito. Nesse caso, o problema filosófico do arremesso desaparece: vamos a um relógio sincronizado com o Tempo Universal Absoluto e determinamos que, de acordo com ele, o arremesso de fato antecedeu a chegada. O arremessador está certo e você foi iludido. Fim de caso.
Mas o que a relatividade fez foi, exatamente, abolir a ideia de que existe um Tempo Universal Absoluto. Um relógio na superfície da Terra mede o tempo diferente de um relógio em órbita e de um relógio na superfície do Sol, e todas as medidas são igualmente válidas. Mas o fato de a velocidade da luz ser um limite absoluto garante que, não importa em qual sistema de referência nos encontremos, as causas sempre antecedem os efeitos.
Um observador na superfície da Terra pode ver um míssil ser disparado às 13h e a nave Klingon que ameaça nosso planeta explodir às 13h15; um observador em órbita talvez veja o disparo às 12h45 e a explosão às 13h30; um observador no Sol pode ver o disparo às 11h e a explosão às 13h. Mas nenhum observador jamais verá a nave explodir antes do míssil ser lançado. O tempo não é absoluto, mas as relações de causa e efeito se preservam sob todos os pontos de vista.
A menos, claro, que a velocidade da luz não seja um limite definitivo. Aí...
(Assovio da abertura de Arquivo X, por favor, maestro.)
Imagino que todos concordariam que a destruição do significado físico das noções de "causa" e "efeito" seria uma revolução conceitual sem precedentes, um golpe na visão humana do Universo, uma quebra de (desculpe) paradigma, blá, blá, blá.
Então, poxa, onde estão os Men in Black? Cadê a reação violenta e furiosa da ortodoxia? Ninguém acendeu as fogueiras da inquisição, ainda? Como é o paper dos italianos está livre para todo mundo ler no Arxiv? Cadê os Arcontes, o Complexo Industrial-Militar e o Priorado de Sião, pelamorededeus?
Um mito muito propagado a respeito da ciência é que ela seria um "culto da ortodoxia", onde uma "casta sacerdotal" (os cientistas) trabalharia incansavelmente para garantir que verdades libertadoras, chocantes ameaçadoras ficassem, para sempre, fora do alcance das massas. Uma versão mais sutil do mesmo mito -- muitas vezes esgrimida por ufólogos e místicos em geral -- propõe que a ciência é incapaz de descobrir coisas que estão "fora de seu paradigma". Tipo, violações da relatividade restrita.
Ops!
Como bem notou o autor Benjamin Radford, cientistas tratam alegações extraordinárias com ceticismo simplesmente porque o que as torna extraordinárias é o fato de elas contradizerem a experiência anterior: se para aceitar o extraordinário X é preciso descartar os bem-estabelecidos A, B, C, D, E..., então é melhor que X nos ofereça muito boas razões para tanto. E, claro, "tratar com ceticismo" não é igual a "suprimir".
O experimento italiano ainda será analisado e criticado por outros cientistas. É bem provável que algum erro tenha ocorrido nas medições; mas se nenhum erro for descoberto, a ciência vai se ajustar aos novos fatos. Talvez a nova velocidade máxima do Universo, contra a qual as relações de causa e efeito devem ser medidas, seja a dos neutrinos, não a da luz; talvez exista, afinal, um Tempo Universal Absoluto. Ou talvez passado e presente sejam categorias paroquiais. Ou talvez a explicação seja ainda mais estranha.
Mas seja qual for a resposta, cientistas não são sacerdotes que rasgam as vestes e cobrem a cabeça de cinzas diante de blasfêmias. A cortina do templo não vai se rasgar ao meio, simplesmente porque não há cortina. Ou templo.
Não muito mais rápido, é verdade (uma diferença de 60 nanossegundos num trajeto de 730 km), mas, ei, é da velocidade da luz no vácuo que estamos falando aqui. O limite máximo do Universo. O parafuso que mantém nossa noção de realidade firme no lugar.
Suponho que praticamente todo mundo que já assistiu a um filme de Guerra nas Estrelas sabe que é impossível, em condições normais, viajar mais depressa que a luz.
Há razões práticas para isso -- é um fato comprovado que ao acelerar um corpo, aumentamos sua massa inercial, isto é, sua resistência à aceleração; e há motivos para acreditar que, à medida que a a velocidade do corpo se aproxima da velocidade da luz, essa resistência se aproxima de um valor infinito. Assim, o último passo da aceleração, digamos, o 0,00000000000000000000000001% que falta para alcançar a velocidade da luz, iria requerer um esforço infinito para se concretizar. Como não é possível realizar esforços infinitos, não é possível atingir (que se dirá superar) a velocidade da luz.
Essa razão prática, no entanto, não explica a bomba filosófica que uma violação do limite da velocidade da luz traz: essa violação tem o potencial de destruir de vez o significado de conceitos como "antes" e "depois", "causa" e "efeito".
Imagine, por exemplo, que uma pessoa do outro lado da sala jogue para você uma bola, e que a bola viaje mais depressa do que a luz. Isso quer dizer que a bola chegará às suas mãos antes que você a veja ser lançada: do seu ponto de vista, o efeito (a bola chegar) antecede a causa (o arremesso).
Você pode argumentar que se trata apenas de uma questão de ponto de vista. Que, na verdade, a bola foi arremessada antes de chegar. Certo, essa é a situação do ponto de vista do arremessador, mas por que o ponto de vista dele valeria mais que o seu?
Antes de Einstein aparecer com a teoria da relatividade restrita, em 1905, supunha-se que todos os eventos do Universo poderiam ser localizados, no tempo, de acordo com um padrão fixo e imutável. Uma espécie de relógio universal perfeito. Nesse caso, o problema filosófico do arremesso desaparece: vamos a um relógio sincronizado com o Tempo Universal Absoluto e determinamos que, de acordo com ele, o arremesso de fato antecedeu a chegada. O arremessador está certo e você foi iludido. Fim de caso.
Mas o que a relatividade fez foi, exatamente, abolir a ideia de que existe um Tempo Universal Absoluto. Um relógio na superfície da Terra mede o tempo diferente de um relógio em órbita e de um relógio na superfície do Sol, e todas as medidas são igualmente válidas. Mas o fato de a velocidade da luz ser um limite absoluto garante que, não importa em qual sistema de referência nos encontremos, as causas sempre antecedem os efeitos.
Um observador na superfície da Terra pode ver um míssil ser disparado às 13h e a nave Klingon que ameaça nosso planeta explodir às 13h15; um observador em órbita talvez veja o disparo às 12h45 e a explosão às 13h30; um observador no Sol pode ver o disparo às 11h e a explosão às 13h. Mas nenhum observador jamais verá a nave explodir antes do míssil ser lançado. O tempo não é absoluto, mas as relações de causa e efeito se preservam sob todos os pontos de vista.
A menos, claro, que a velocidade da luz não seja um limite definitivo. Aí...
(Assovio da abertura de Arquivo X, por favor, maestro.)
Imagino que todos concordariam que a destruição do significado físico das noções de "causa" e "efeito" seria uma revolução conceitual sem precedentes, um golpe na visão humana do Universo, uma quebra de (desculpe) paradigma, blá, blá, blá.
Então, poxa, onde estão os Men in Black? Cadê a reação violenta e furiosa da ortodoxia? Ninguém acendeu as fogueiras da inquisição, ainda? Como é o paper dos italianos está livre para todo mundo ler no Arxiv? Cadê os Arcontes, o Complexo Industrial-Militar e o Priorado de Sião, pelamorededeus?
Um mito muito propagado a respeito da ciência é que ela seria um "culto da ortodoxia", onde uma "casta sacerdotal" (os cientistas) trabalharia incansavelmente para garantir que verdades libertadoras, chocantes ameaçadoras ficassem, para sempre, fora do alcance das massas. Uma versão mais sutil do mesmo mito -- muitas vezes esgrimida por ufólogos e místicos em geral -- propõe que a ciência é incapaz de descobrir coisas que estão "fora de seu paradigma". Tipo, violações da relatividade restrita.
Ops!
Como bem notou o autor Benjamin Radford, cientistas tratam alegações extraordinárias com ceticismo simplesmente porque o que as torna extraordinárias é o fato de elas contradizerem a experiência anterior: se para aceitar o extraordinário X é preciso descartar os bem-estabelecidos A, B, C, D, E..., então é melhor que X nos ofereça muito boas razões para tanto. E, claro, "tratar com ceticismo" não é igual a "suprimir".
O experimento italiano ainda será analisado e criticado por outros cientistas. É bem provável que algum erro tenha ocorrido nas medições; mas se nenhum erro for descoberto, a ciência vai se ajustar aos novos fatos. Talvez a nova velocidade máxima do Universo, contra a qual as relações de causa e efeito devem ser medidas, seja a dos neutrinos, não a da luz; talvez exista, afinal, um Tempo Universal Absoluto. Ou talvez passado e presente sejam categorias paroquiais. Ou talvez a explicação seja ainda mais estranha.
Mas seja qual for a resposta, cientistas não são sacerdotes que rasgam as vestes e cobrem a cabeça de cinzas diante de blasfêmias. A cortina do templo não vai se rasgar ao meio, simplesmente porque não há cortina. Ou templo.
Talvez fosse interessante mencionar que o limite absoluto é para a velocidade da luz no vácuo. Em meios materiais, a luz viaja um pouco mais devagar, e outras partículas podem ser mais rápidas que essa velocidade da luz reduzida, mas não acima da velocidade da luz no vácuo. O efeito Cerenkov é produzido nesses casos. O brilho azulado nos reatores nucleares vem daí.
ResponderExcluirBem lembrado, Marcelo! Obrigado!
ResponderExcluirEssa história do neutrino não põe fim à relação de causa e efeito. Pelo menos como foi exposta aqui.
ResponderExcluirSe for assim, a relação de causa e consequência já acabou bem antes para os morcegos, pois um avião (mais rápido que o som) que parte de A para B será "visto" em B, por um morcego situado em B, antes que este mesmo morcego perceba quando o avião estava em A. Ou seja, o efeito será percebido antes da causa, já que o avião chegará em B antes de seu som, emitido quando ele partia de A.
O que temos na verdade é uma confusão, fruto de interpretação equivocada dos sentidos. Erro já debatido (com conclusões distintas) por Descartes e Spinoza no séc. XVII (a historinha da vela e de seu reflexo no espelho).
Oi, Pablo!
ResponderExcluirSom e luz são -- ou parecem ser, ao menos enquanto a relatividade restrita se sustentar -- qualitativamente diferentes.
O que ocorre é que, na estrutura teórica atual, a passagem do tempo é definida em função da velocidade da luz no vácuo: só podemos afirmar que o avião supersônico precede seu som, em todos os quadros de referência, porque a constância da velocidade da luz nos permite realizar as conversões necessárias entre os diferentes quadros; por exemplo, comparando a leitura do mostrador de um relógio suspenso por um balão no ponto A, marcando o momento em que o avião rompe a barreira do som, à leitura de um relógio no "pulso" do morcego em B.
Se o neutrino realmente pode viajar mais depressa que a luz, a possibilidade de realizar esse tipo de comparação com a certeza de que A sempre antecederá B desaparece.
Resumindo, podemos dizer que o avião chega antes de seu som não porque existe um tempo absoluto contra o qual podemos medir sua passagem, mas porque definimos quadros de referência temporal baseados na constância (e na insuperabilidade) na velocidade da luz no vácuo.